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30/10/2010

Os Sapatinhos Encantados


ERA UMA VEZ uma mulher muito bonita que dava estalagem e a todos os almocreves que lá iam perguntava se tinham visto uma mulher mais bonita do que ela. Ela tinha uma filha mais bonita do que ela e tinha-a fechada para ninguém a ver. Disse-lhe um dia um almocreve: «Ainda agora ali vi uma mulher mais bonita a uma janela a pentear-se.» «Ai! Era a minha filha; pois vou mandar matá-la.»
E mandou dois criados matá-la a um monte e ela disse-lhes que a não matassem, que a deixassem, que prometia não tornar a casa. Os criados tiveram dó dela e deixaram-na. Ela foi indo e chegou a uma serra e viu uma casa; era noite; pediu se a acolhiam e não achou ninguém. Entrou para dentro e fez a ceia, e assim que a acabou de fazer, escondeu-se; nisto chegaram ladrões que vinham de fazer um roubo e, depois que viram a ceia feita, começaram a dizer: «Ai! Quem nos dera saber quem é que fez a ceia. Se por aí está alguém, apareça.»
E ela apareceu-lhes e contou-lhes a sua sorte, coitadinha, e eles disseram: «Agora não se aflija; há-de ficar connosco e fazemos a atenção que você é nossa irmã.» Daí por diante os ladrões lá iam para os seus roubos e ela ficava sempre; eles estimavam-na muito e tratavam-na.
Ia uma velhota a casa da mãe dela que andava sempre em recados por muitas terras e a mãe dela disse-lhe: «Você, como anda por muitas terras, diga-me se já viu uma cara mais linda do que a minha.»
E ela disse-lhe: «Vi, vi uma rapariga que ainda era mais linda que você em tal banda.» «Você quando vai para lá? Quero que lhe leve uns sapatos.» E deu uns sapatos à velha e disse-lhe: «Leve-lhos e diga-lhe que é a mãe que lhos manda; mas ela que os calce antes de você de lá sair; eu quero saber de certo que ela os calça; olhe que eu pago-lhe bem.»
A mulher levou os sapatos à filha; chegou lá e disse-lhe: «Aqui tem esses sapatos que lhe manda a sua mãe.» Ela disse-lhe: «eu não quero cá sapatos nenhuns; meus irmãos dão-me quantos sapatos eu quiser; não os quero.»
A velha ateimou tanto com ela que ela pegou neles; calçou um, fechou-se um olho; calçou outro, fechou-se-lhe o outro olho e ela caiu morta. Depois vieram os ladrões, choraram muito ao pé dela, lastimaram muito a morte dela e depois disseram: «Esta cara não há-de ir para debaixo da terra; levemo-la num caixão à serra de tal banda que vem lá o filho do rei à caça para ele ver esta flor.»
Depois levaram-na a esse sítio; veio o filho do rei e viu-a e achou-a muito bonita e depois tirou-lhe um sapato e ela abriu um olho, tirou-lhe outro, abriu outro olho e ficou viva. E ele então levou-a para casa e casou com ela e foram visitar a bêbeda da mãe e esta ainda depois mesmo a queria mandar matar, mas não o conseguiu.

COELHO, Adolfo, «Contos populares portugueses»


25/10/2010

A Jóia Preciosa

Num longínquo reino de perfeição, um rei poderoso e justo tinha uma esposa e duas crianças maravilhosas, um filho e uma filha.
E todos viviam em grande felicidade.
Um dia o pai chamou os filhos para junto de si e lhes disse:
– Chegou para vocês, como chega para todos, o momento em que deverão partir em direção a um outro mundo, a uma distância infinita. Lá vocês irão procurar uma jóia preciosa, e assim que a encontrarem voltarão, trazendo-a com vocês.
Cercados de grande segredo, os viajantes foram levados a uma nova e estranha terra, onde quase todos os habitantes viviam na obscuridade e na noite do seu sono.
O choque foi tão grande que o irmão e a irmã se separaram, perderam progressivamente o contato entre eles, e logo esqueceram tudo sobre a sua origem.
Como os demais habitantes daquele país, eles iam de um lado para outro, dormindo profundamente.
De tempos em tempos, sonolentos, viam sombras, miragens distantes do país de onde tinham vindo, ou então sonhavam com uma jóia.
Mas na condição em que se encontravam eram incapazes de lembrar-se da realidade, e pouco a pouco foram tomando os sonhos por ilusões.
Quando o rei tomou conhecimento disso, considerou a difícil situação em que seus filhos se encontravam e decidiu mandar um servidor de confiança para ajudá-los.
Esse servidor era um sábio e levou-lhes uma mensagem:
"Lembrem-se da missão de vocês; acordem do sono em que submergiram e fiquem unidos."
Logo que ouviram a mensagem as duas crianças acordaram.
Graças à ajuda do guia enviado para libertá-las, elas puderam vencer os grandes perigos que ainda as separavam da jóia preciosa.
Quando a encontraram as crianças voltaram para o reino da luz.
E lá foram mais felizes do que antes, e para sempre.


O cavaleiro desmantelado

Era uma vez, dois pequenos reinos separados por uma floresta e uma feroz inimizade.
Um ao norte e outro ao sul do Grande Bosque Sombrio, brigavam pelas riquezas que imaginavam ali existirem, como: ouro, prata e pedras preciosas.
Há cinco gerações se detestavam, desde quando o segundo rei de Cropas, do reino do norte, declarara para quem quisesse ouvir que a floresta e suas maravilhas lhe pertenciam por direito de sua vontade.
O soberano do sul, rei de Praus, dissera aos seus súbditos que, também por vontade , eram seus aqueles tesouros e, por causa de opiniões tão diferentes, em quase duzentos anos, não houve sossego nas duas terras.
Um dia, não se sabe como, espalhou-se nos reinos a notícia alarmante de que a guerra era eminente. O rei de Praus alisou seus bigodes retorcidos e mandou que suas tropas se preparassem. O rei de Cropas acariciou sua barbicha e deu uma ordem igual. Assim, ficou tudo pronto para a mudança. Entretanto, para sorte dos soldados que iriam tombar na luta , havia no reino de Cropas um sábio que teve uma visão e contou-a ao rei.
- Vi apenas dois homens se enfrentando no campo de batalha: um lutando por Cropas e o outro por Praus.
O rei de Cropas, louro de barbicha pensou e pensou nas palavras do sábio. Teve uma ideia: seu primo Rodolfo Coração de Bode, era um valente cavaleiro e, provavelmente, não havia em Praus alguém que se lhe comparasse. Era melhor arriscar o parente do que seus minguados batalhões. Mandou, então, três embaixadores ao outro lado proporem um duelo e deixarem escapar nas negociações que Rodolfo Coração de Bode tinha o peito e os braços fracos, estando já mais para lá do que para cá.
O rei de Praus ouviu a proposta com agrado, pois o exército do reino andava mal das pernas e de armas. Combater um cavaleiro moribundo era muito conveniente. Aceitou na hora. O confronto seria daqui a sete dias.
O rei de Cropas tinha Rodolfo, mas quem lutaria por Praus?
De pura sorte, ou talvez, por artes das fadas ou bruxas, apareceu no castelo de Praus, seis manhãs após a visita dos embaixadores, um cavaleiro andante embrulhado numa antiga armadura, completamente escondido dentro da lataria mal conservada. Vinha num cavalo de passo cansado. Desmontou com dificuldade e se apresentou:
- Sou o cavaleiro Desmantelado e peço pousada.
O rei de Praus não titubeou e deu a pousada, mas foi consultar o seu sábio.
- O que quer dizer Desmantelado?
O sábio examinou seus livros e disse:
- Quer dizer desconjuntado.
- Ah! Fez o rei. Ele me pareceu uma estranha figura. Um tanto amassado, mas nos servirá, já que o adversário não é bom de braços. Vou convidá-lo para a disputa , agora mesmo.
O rei encontrou o desconhecido tentando tirar seu elmo emperrado. Aceitou na hora o pedido do rei, mas fez um pedido também.
- Queria um pouco de cola e corda para remendar a sua armadura..
Naquela noite,os reinos de Praus e Cropas dormiram agitados pensando na disputa do dia seguinte.
Bem cedo , os reis buscaram bons lugares para apreciar a disputa. Na hora combinada, um clarim indicou que os dois competidores tomassem as posições.
Surgiu Rodolfo com um penacho vermelho, cor de Cropas, altivo e aprumado. O cavaleiro Desmantelado apareceu com sua armadura rangendo de tanta ferrugem e seu elmo emperrado.
Começa a luta e desmantelado balança perigosamente. Os dois se enfrentam e para surpresa geral, caem os dois. Esparramam-se no chão. Não conseguem levantar-se. De repente, Desmantelado grita implorando por água. Dêem-me água pois há dezoito horas não como nem bebo por causa do elmo emperrado.Rodolfo conhece a voz fanhosa do rapaz e descobre que é Privaldo, um jovem de Praus , que partira há muitos anos para correr mundo, era seu melhor amigo. Foram eles os únicos habitantes dos dois reinos que se encontraram durante os duzentos anos de ódios. Ele vai até o amigo destranca-lhe o elmo com um pedaço de sua lança e manda seu escudeiro dar água ao amigo. Desmantelado reconhece Rodolfo e se emociona. Eles tiram as armaduras e se abraçam e a multidão fica boquiaberta, porque eles revelam a verdade do Bosque Sombrio: nada de ouro, de prata , de pedras preciosas... apenas um pomar de maçãs.
Chamam o povo para colher maçãs e todos os seguem felizes.
Os reis percebem que não adiantava mais guerrear já que a única coisa que restava era também comerem maçãs.
Assim, acabou a briga entre os dois reinos e viveram felizes ...com sua maçãs!!!



O caranguejo



Um caranguejo notou que diversos peixinho preferiam, ao invés de se aventurarem pelo rio a fora, nadar prudentemente em torno de uma pedra.
A água era límpida como ar, e os peixes nadavam tranquilos, gozando tanto a sombra quanto a luz do Sol.
O caranguejo esperou a chegada da noite, e ao certificar-se de que ninguém o veria, escondeu-se em baixo da pedra de seu esconderijo, como um ogre em sua caverna, ficou à espreita, e quando os peixinhos passaram perto, atacou-os e devorou-os.
- Isso não está certo - resmungou a pedra - não quero ajudar você a matar esses pobres inocentes.
O caranguejo não deu ouvidos à pedra. Satisfeito e feliz, continuou a atacar os peixinhos, que tinham um sabor delicioso.
Porém um dia houve uma enchente inesperada. O rio avolumou-se e empurrou a pedra com toda a força. A pedra rolou pelo leito do rio e esmagou o caranguejo que se escondia em baixo dela.


Fábulas de Leonardo da Vinci


24/10/2010

Thor e seu criado Thialfi



Thor, o deus do trovão, tinha um fiel servidor chamado Thialfi. Eles se conheceram da seguinte maneira: Thor e o astucioso Loki haviam decidido ir até a Terra dos Gigantes (Jotunheim) para que Thor desafiasse aqueles arrogantes seres a uma disputa de força, bem ao gosto da época. Após um dia de cansativa viagem, entretanto, resolveram fazer pouso numa casa muito pobre - pois era a única que avistaram nas proximidades. Thor desceu sua carruagem puxada por dois vigorosos bodes e junto com Loki pediu alojamento por aquela noite. Estavam já sentados à mesa para matar a fome de um dia inteiro de caminhadas, quando Thor percebeu que aquela frugalíssima refeição não seria nem de longe o suficiente para saciar o seu monstruoso apetite.
- Só isto: duas nozes e um pedaço rançoso de queijo? - disse Thor, com o semblante irado, ao dono da casa e à sua mirrada esposa.
- É o que a pobreza nos permite, poderoso deus...! - disse o humilde anfitrião. Mas, neste momento, ele escutou o balir de suas duas cabras, que estavam lá fora, no pequeno redil.
- Garoto, vá até lá e traga já os dois animais! - disse Thor a Thialfi, que era o filho do dono da casa.
Thialfi deu um olhadela em seus pais e estes confirmaram, sem coragem para contestar o desejo do irascível deus. Num instante, as duas cabras estavam na sala apertada, espremidas com os demais.
- Matem-nas e façam uma bela caldeirada! - disse Thor ao casal.
O velho, entretanto, temeroso de que isto pudesse enfurecer o deus, disse:
- Mas, poderoso deus, são as suas cabras!...
- Loki, mate-as você, já que nossos anfitriões se recusam a nos saciar a fome! - bradou Thor, com o semblante ainda mais irado.
Loki deu cumprimento à ordem, e logo os pedaços das duas cabras estavam nadando dentro de um imenso caldeirão. Thor e Loki comeram com imenso prazer, mas Thialfi e seus pais mal puderam mastigar alguns bocados, pois temiam estar cometendo algum sacrilégio.
Thor custou a perceber a angústia dos anfitriões, mas, uma vez avisado por Loki, tratou de lhes acalmar a aflição.
- Não se preocupem - disse ele, com a barba ruiva manchada pelo molho. – Basta que recolham os ossos das duas cabras e os coloquem dentro de suas respectivas peles e amanhã os animais estarão inteiros outra vez.
O rosto dos anfitriões iluminou-se e, somente então, puderam comer a refeição – ou pelo menos o que sobrara dela - com gosto e alegria.
Loki, entretanto, dominado pelo seu furor em armar confusões, decidiu aprontar uma para cima daqueles pobres coitados. Cochichou, matreiramente, ao ouvido de Thialfi: - Thor não lhes deixou grande coisa: veja só o que restou...!
De fato, dentro do caldeirão restavam apenas os ossos das duas cabras, lisos como pedras.
- Abra um deles e chupe o tutano! - cochichou ainda a Thialfi. - Verá que não há nada mais saboroso do que o tutano de uma bela cabra cozida!
O jovem, esfomeado, seguiu o conselho e saboreou o petisco. Terminada a refeição, foram todos deitar, não sem antes devolver os ossos às respectivas peles.
Nunca uma noite foi tão contrastante como aquela, pois enquanto os dois visitantes dormiam e roncavam como duas sonoras tubas, os moradores da casa não podiam desgrudar os olhos, lá de seus miseráveis leitos, das peles recheadas de ossos, que jaziam atiradas a um canto. Mesmo quando tentavam fechar os olhos para dormir um pouco, tudo o que conseguiam ver nesta modorra angustiante era as duas cabras desconjuntadas, tentando se manter, desesperadamente, em pé e o deus tomado pela ira, arrebentando com tudo.
Porém, tão logo amanheceu, o velho dirigiu-se humildemente a Thor, e disse, enquanto fazia girar em suas encarquilhadas mãos o seu velho gorro:
- Poderoso Thor, será que elas voltarão a ser como eram...?
- Elas quem?... - disse o deus, com as barbas emaranhadas pelo sono.
- As suas cabras! - disse o velho, apontando para as peles cheias de ossos.
- Ah, sim! - exclamou o deus, tomando de seu martelo Miollnir. - Aproximando-se, então, dos restos dos animais, tocou-os com o martelo e eis que ali estavam outra vez, inteiros c saudáveis, os dois animais!
- Viva! - exclamou Thialfi junto da mãe, que batia palmas feito uma criança.
Mas cedo desfez-se a alegria, pois logo Thor percebeu que uma das cabras coxa.
Thor, encolerizando-se, ameaçou matar a família inteira, enquanto Loki tapava a boca com a mão para esconder o riso.
Os dois velhos arrojaram-se diante do deus e clamaram de mãos postas:
- Por favor, poderoso Thor! Perdoa a gula de nosso irresponsável filho! Há muitos meses que não sabia o que era provar o gosto de uma carne!
Mas, Thor estava irredutível e prestes a fazer descer seu pavoroso martelo sobre a cabeça dos infelizes quando o velho, em desespero, disse-lhe:
- Leve consigo o meu filho! Ele será seu escravo para sempre! Somente então, Thor sentiu aplacar sua ira.
- Está bem, levarei o jovem comigo! - disse ele, encaminhando-se para a porta, juntamente com Loki, o causador de tudo.
E foi assim que, ao mesmo tempo, Thialfi tornou-se o servo predileto de Thor e dois pobres pais perderam o animo de sua velhice.


23/10/2010

As chamas


As chamas brilhavam há mais de um mês na fornalha do soprador de vidro, onde eram feitos vidros e garrafas.
Um dia viram aproximar-se uma vela colocada num castiçal fino e brilhante. Imediatamente, com um desejo ardente, as chamas tentaram aproximar-se da linda vela.
Uma delas, saltando da brasa que a alimentava, virou-se de costas para a fornalha e, passando através de uma pequenina fresta, atirou-se para cima da vela, devorando-a sofregamente.
Porém a ávida chama logo consumiu a pobre vela e, não desejando morrer com ela, tentou voltar para a fornalha de onde havia fugido.
Porém não conseguiu desgrudar-se da cera amolecida e, em vão, gritou para as outras chamas, pedindo socorro.
A chama rebelde transformou-se numa sufocante fumaça, e deixou todas suas irmãs resplandecentes, com a perspectiva de uma vida longa e brilhante.





O prédio harmonioso



Tenho um vizinho que toca violino, e que bem que toca violino o meu vizinho. Mora no 1.º esquerdo.
Tenho outro vizinho que toca violoncelo, e que bem que toca violoncelo o meu vizinho. Mora no 2.º direito.
Tenho outro vizinho que toca piano, e que bem que toca piano o meu vizinho. Mora no 1.º direito.
Tenho outro vizinho que toca viola clássica, e que bem que toca viola o meu vizinho. Mora no 2.º esquerdo.
No rés-do-chão há uma loja de instrumentos musicais. A loja, durante o dia, está sempre cheia de música, porque nela vendem pianos, acordeons, violinos, violas, guitarras... eu sei lá que mais. Vendem e consertam. À noite, claro está, a loja descansa, mas os meus vizinhos encarregam-se da música do prédio, que fica só por conta deles.
Não tem mais andares o nosso prédio. É o rés-do-chão, o primeiro e o segundo. Então onde é que mora quem isto conta?
Onde é que eu moro, querem saber? Moro na escada, num canto escondido, e não me canso de ouvir música.
Quando oiço os meus vizinhos tocar, digo-lhes, em surdina, em segredo, como se eles pudessem ouvir: ?Certinhos! Certinhos! Muito certinhos!". É um prédio muito harmonioso.
Pelo meu lado, faço o que posso. Também toco, pois claro. Toco harpa. Sou a aranha da escada e toco harpa, quando os meus vizinhos já estão a dormir. Acredito que, em sonhos, eles devem ouvir-me.
Assim, o prédio harmonioso nunca conhece o silêncio.


António Torrado

22/10/2010

O Homem que vendia fantasmas

Quando Sung Tingpo, de Nanyang, era ainda rapaz estava passeando certa noite quando encontrou-se com uma fantasma. Perguntou à aparição quem era e ela respondeu que era um fantasma. - "Quem é você ?" perguntou por sua vez o fantasma. Tingpo mentiu e respondeu - "Eu também sou um fantasma." O fantasma então quis saber para onde ele ia e Tingpo informou - "Estou a caminho para a cidade de Wanshih." - "Também vou para lá," afirmou a aparição. Assim puseram-se a caminhar juntos. Após uma milha, se tanto, o fantasma disse que era estupidez estarem andando ambos quando um podia carregar o outro, por turnos. - "ótima idéia," achou Tingpo. O fantasma pôs Tingpo às costas e depois de ter andado uma milha disse - "Você é pesado demais para um fantasma. Tem certeza de que é um fantasma mesmo ?" Tingpo explicou que ainda era um fantasma novo e que, por conseguinte, ainda pesava um pouco. Tingpo, por sua vez, pôs-se a carregar o fantasma, mas êsse era tão leve que tinha a impressão de não estar carregando nada. Assim foram caminhando, revezando-se, até que Tingpo perguntou ao companheiro qual era a coisa que metia mais medo aos fantasmas. - "Os fantasmas têm um medo horrível da saliva humana", afirmou o fantasma. Assim foram andando, andando até que chegaram a um rio. Tingpo deixou que o fantasma fosse adiante e observou que êle não fazia barulho algum ao nadar, mas quando êle entrou n’água, o fantasma ouviu o estalar na água e pediu-lhe uma explicação. Tingpo explicou novamente - "Não se surpreenda, pois ainda sou muito novo e não estou ainda acostumado a atravessar a correnteza." No momento em que se aproximavam da cidade, Tingpo começou a carregar o fantasma nas costas apertando-o fortemente. O fantasma pôs-se a gritar e a chorar lutando para apear-se, porém Tingpo o apertou com mais fôrça ainda. Ao chegar às ruas da cidade, soltou-o e o fantasma se transformou num bode. Tingpo cuspiu no animal a fim de que não pudesse transformar-se outra vez, vendeu-o por mil e quinhentos dinheiros e foi para casa. Eis a razão do ditado de Shih Tsung: "Tingpo vendeu um fantasma por mil e quinhentos dinheiros."

(Do "Soushenchi", século IV)

20/10/2010

Corpo Seco

Blog+Corpo-Seco.jpg (image)
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Homem que passou pela vida semeando malefícios e que sevidiou a própria mãe. Ao morrer, nem Deus nem o Diabo o quiseram,e a própria terra o repeliu enojada de sua carne,e um dia, mirrado, defecado, com a pele engelhada sobre os ossos, da tumba se levantou em obediência ao seu fado, vagando e assombrando os viventes na calada da noite.

Conta-se no sertão que pobre mulher, certa vez, amadora dos bons guisados de urupês (orelha de pau), vagava pela mata para colher os apetecidos quando deparou com um pau-piúca caído, onde abrolhavam os saborosos parasitas. Colhia-as quando, no desvendar a parte extrema do madeiro, se tomou de pavor e muito susto ante dois olhos escarninhos que a fitavam, e disparou a correr desorientada sob o riso cachinado do Corpo Seco a chancear da peça que pregou.

Lenda do Brasil

18/10/2010

O gato e a raposa



O gato e a raposa não privavam, em trato de amizade, mas de uma vez que o acaso os juntou deram em considerar que não eram tão desparecidos um com o outro, como se julgavam.
Ambos tinham cauda, embora a da raposa mais felpuda e mais calhada para gola de samarra, o que não era de bom tom lembrar à raposa... Ambos tinham o passo de bailarina em pontas. Ambos tinham olhos de farolim, para descortinar os recantos da noite. Ambos tinham artes de caça e vasto receituário de matreirices. Ambos sabiam, com vaidade, que valiam mais do que pesavam. Ambos tinham aos cães a mesma raiva.
Foi, aliás, a propósito de cães que a raposa e o gato, um dia, em que passeavam a par pelo campo, tiveram a seguinte conversa:
- Se uma matilha de cães nos perseguisse, o que é que tu farias? - perguntou a raposa ao gato.
- Nem me fales nesses monstros, que fico com o pêlo em pé - disse o gato. - Uma matilha? Bastava-me um cão só, para lhe fugir.
- Pois sim, mas como te escapavas? - insistiu a raposa.
- Escapava-me. Fugia. Safava-me. Debandava. Raspava-me. Sumia. Onde houvesse uma árvore para eu trepar era por ela acima que eu desaparecia da vista do cão - explicou o gato, todo arrepiado.
- Vejo que és um pouco simplório e covarde - comentou a raposa. - Pois eu tenho mil manhas e recursos para os afastar de mim. Um catálogo de estratégias, podes crer. A dificuldade está na escolha, quando chega a ocasião.
Logo por azar, surgiu a ocasião. Dois cães de caça correram sobre o gato e a raposa. Sentindo-os perto, o gato saltou para uma árvore e pôs-se a salvo.
Mas já eles corriam sobre a raposa.
Então o gato viu a raposa, que há pouco se gabava de dispor de tantos e tão variados expedientes contra a fúria dos cães, fugir a bom fugir, como qualquer coelho assustadiço. E, lá mais adiante, ser filada pelo rabo...
Não tardaria muito que enfeitasse uma gola de samarra.
Do seu providencial poleiro, o gato matutava que mais vale saber do que apregoar que se sabe.

Era para ser




Há muitos monstros nesta história. É um aviso, a tempo. Não querendo, não conto.
Estava a apetecer-me, mas desisto. Mudo para uma história sem monstros. Pronto, acabou-se. Ele há tantas histórias por contar...
Por sinal que nesta até havia monstros simpáticos. Coitados. Que culpa tinham eles, se os enfiaram a todos na mesma história, empurrados, varridos, enxotados, expulsos, desterrados das histórias onde estão proibidos os monstros.
A monte, num grande aperto, ogres, lobisomens, monstrengos e gigantones eram um espectáculo desolador. Já não metiam medo. Quanto muito, metiam dó.
- Prestamos para nada - dizia um gigantão, com um olho só, no meio da testa. - É que ninguém, ninguém, ninguém nos liga.
E tinha razão o ciclope. Limpou uma lágrima que lhe escorria do olho único e fungou, que nem um menino amuado.
Como os monstros não se assustam uns aos outros, que préstimo tinham, ali acocorados, de cabeça baixa, a limparem as unhas, feitos monos?
- Só se fizéssemos um concurso. Elegíamos a Miss ou o Mister Monstro, que tinha de ser o mais feio de nós todos - sugeriu um lobisomem horrendo, com uma secreta esperança de ganhar. - Convocávamos a televisão e fazíamos um grande desfile.
Em resposta, um ogre, que estava perto, fez uma pavorosa careta de incredulidade.
- Concursos só se forem de beleza. A televisão não se interessa por concursos de fealdade.
Enganava-se. Este ogre estava pouco a par da programação televisiva. Não há nada mais na moda do que concursos de monstros e de monstruosidades.
Houve logo uma estação que pegou na ideia. E exigiu exclusivo.
- Preparem tudo em segredo, para que não haja fuga de informações nem copianços - recomendou o director do canal televisivo.
- Mas isso não era possível, porque estamos cá todos. Não há mais monstros por fora - disseram os monstros.
- Vocês esquecem-se de que a concorrência é terrível e bem capaz de inventar um concurso de falsos monstros - lembrou o director da estação, que sabia do que falava.
Mas, afinal, não chegou a haver concurso, para grande desolação dos monstros concorrentes. Sabem porquê? Porque não se conseguiu juntar um júri à altura.
Os jurados ou se amedrontavam ou desatavam a rir, para não se amedrontarem. Vieram levas sucessivas, à experiência, de óculos escuros, sem óculos escuros, de lenço ao pescoço, sem lenço ao pescoço, e ninguém ficou para as provas finais.
Em conclusão: os monstros voltaram ao mesmo desânimo. Se os deixassem passear, nem que fosse só um bocadinho, entrada por saída, vou ali e já venho, pelas histórias donde tinham sido expulsos, talvez arribassem, ganhassem melhor parecer, mais verdes, mais escamosos, mais peludos...
Qual quê! Ninguém os pode convidar para semelhante passeio. Até eu, que, às vezes, tenho ganas de contar histórias de monstros, sou sempre obrigado a desistir. Como agora.
Em segredo, aqui para nós, talvez volte a tentar, lá mais para diante.

António Torrado


17/10/2010

Dama do Lago

Dama do Lago (ou Fada Viviane como é mais conhecida) é, de acordo com a lenda, uma das sacertotisas de Avalon ou até a mais importante delas. Filha de Diana, a deusa dos bosques e irmã mais velha de Igraine, a fada tinha a missão de proteger e entregar a espada mágica do Rei Artur, a sagrada Excalibur. Ela foi morta por Balim,irmão de criação de seu filho Balam, enquando estava na comemoração de Pentecostes para pedir ao rei mais uma vez que ele fosse fiel às suas promessas sobre os antigos povos. Lancelot matou Balim em vingança da morte da mãe. O corpo da Dama do Lago não foi levado até Avalon para a despedida das outras sacerdotisas, e sim a Glastonbury,por ordens de Artur.





A sociedade dos bons sentidos



Eram duas orelhas. Só duas orelhas.
Estavam num grande cartaz que anunciava uma marca de aparelhos de rádio: PARA OS RÁDIOS THO-KATU-DO SOU TODO OUVIDOS.
O anúncio passou à história - será esta? - e as orelhas ficaram desempregadas. Que fazer?
Deu-lhes para voar sobre a cidade, como uma borboleta gigante, à procura de poiso.
Foram ter a um ferro-velho ao ar livre, onde, no meio de muita tralha, repousavam, sem préstimo, uns óculos gigantes, com o respectivo nariz. Tinham estado pendurados na fachada de uma loja de oculista, que mudara de ramo.
Associaram-se as orelhas aos óculos mais o nariz. Já não faltava tudo.
A borboleta que voava, agora, sobre os telhados da cidade estava mais completa. Ouvia, via e cheirava.
Operários andavam a desmontar do alto da porta de uma luvaria uma grande mão enluvada. O prédio ia ser deitado abaixo. A quem interessava uma luva sem luvaria?
Interessava à nova sociedade Orelhas, Óculos & Nariz, Ldª, em franco progresso.
Mesmo enluvada, a mão tinha tacto, pegava em coisas, dizia adeus. Era uma colaboradora imprescindível.
Se as orelhas ouviam, se os olhos atrás dos óculos viam, se o nariz cheirava e se a mão tacteava, o que é que faltava, para completar os cinco sentidos?
- Faltava a boca! - não disseram eles, porque não tinham boca para dizer.
Pois faltava a boca, que é a porta do paladar e, além disso, que fala, ri, assobia, beija. Ter boca dá imenso jeito.
Mas encontrar uma disponível?! Quem a tem, guarda-a para si. Não ia ser fácil.
A sociedade Orelhas, Óculos, Nariz & Mão, Ldª, resolveu pôr um anúncio no jornal:

BOCA
Precisa-se. De preferência,
com dentes. Resposta a
este jornal, ao nº tal e tal.

Responderam vários candidatos. Ofereceu-se uma dentadura, mas sem boca, o que não era conveniente. Ofereceu-se a Boca do Inferno, um precipício sobre o mar de Cascais, o que estava fora de causa. Ofereceu-se um pudim chamado Boca Doce, também a despropósito. Ofereceu-se uma boca de favas, que ninguém percebia.
Por isto ou por aquilo, todas as bocas que apareceram foram rejeitadas. A boca do estômago, a boca de incêndio, a boca da noite e outras bocas e boquinhas não vinham para o caso.
- Parece que ficamos sem boca - não disseram eles, que não tinham boca, mas pensaram.
Até que lhes apareceu um coração, um lindo coração doirado de noiva minhota, que se apresentou nestes termos:
- Faço as vezes da boca que vos faz falta, porque tenho o coração ao pé da boca.
Onde? Não se via, mas eles acreditaram. Havia tanta franqueza naquele coração de oiro, que tudo o que ele dizia tinha de ser verdade.
E provou.
O MAIOR ESPECTÁCULO DO MUNDO, anunciava a cara cheia de um palhaço, de grandes orelhas e óculos estapafúrdios, sobre o nariz pintado, a apontar, com a mão enluvada, a entrada de um circo.
Não passava despercebida.
Aquela cara inocente de palhaço tinha a boca ao pé do coração. Ou vice-versa. E cinco ou mais sentidos de alegria, sempre generosos e prontos a apresentar o maior espectáculo do mundo que é a vida. Ou vice-versa.


António Torrado


13/10/2010

O Julgamento de uma disputa



Em Linhuai, um vendedor de sedas levava uma peça desse tecido impermeável para vender na cidade. Quando começou a chover, êle a abriu sobre a cabeça para abrigar-se e em breve outro homem veio proteger-se sob a peça. Ao parar a chuva, ambos começaram a disputar sobre a posse da seda. Hsüeh Hsüan disse: - "Essa peça de seda impermeável vale apenas algumas centenas de moedas. Por que brigar por causa dela ?" Por conseguinte, cortou-a em dois pedaços e deu um deles a cada um dos contendores. Continuou a olhá-los e viu que o verdadeiro dono protestava que tinha sido enganado ao passo que o outro parecia bem satisfeito. Assim soube a quem pertencia mesmo a seda e o outro homem foi declarado culpado e condenado.

(Do Fengshut'ung, século II)

11/10/2010

Como um velho perdeu sua verruga

Há muito tempo atrás um velhinho morava com sua esposa perto de uma floresta. Na juventude ele fora um belo rapaz, mas à medida que envelhecia, uma feia verruga cresceu-lhe na face, ficando, com a idade, cada vez maior. Durante anos, recorreu a médicos e magos e experimentou pós e poções, mas nada adiantou. Por fim resignou-se com a verruga e tentava mesmo brincar a respeito.
Um dia, o velho precisou de lenha para o fogo; foi então para as montanhas e cortou algumas achas. Fazia um dia fresco de outono e ele se sentia tão feliz que nem viu as nuvens se adensarem. Quando caíram as primeiras gotas, correu a procurar abrigo. Encontrou uma árvore oca e lá se escondeu, no exacto momento em que irrompeu a tempestade. Trovões sacudiam as montanhas e raios cintilavam ao seu redor; ele, porém, estava seco e seguro. Depois de muitas horas, a tempestade amainou e o velho saiu de seu refúgio. Ouviu vozes à distância e pensou que seus vizinhos tinham vindo à sua procura. Mas quando viu do que se tratava, pasmou horrorizado - uma horda de gnomos e demônios se aproximava!
Mais que depressa, volou para seu esconderijo na árvore, tremendo de medo. Os demônios chegaram e um dos gnomos - o mais horrendo de todos e obviamente o chefe - dirigiu-se ao seu bando, dizendo com um gesto:
- Vamos dar uma festa aqui.
Então o rei-demônio acomodou-se de costas para o velho, na frente da árvore oca. O pobre homem quase desmaiou de medo.
Os demónios organizaram rapidamente um piquenique e começaram a cantar. O velho observava atónito - nunca vira nada semelhante. Mas quando os demónios começaram a dançar, não pôde conter o riso. Eram desajeitados e deselegantes, e todos pareciam ridículos, dando coices para todo lado e caindo. Finalmente, o rei dos demónios com um gesto ordenou aos dançarinos que parassem.
- Vocês são ruins demais! - disse, se lastimando. - Não existe ninguém aqui que saiba dançar bem?
Ora, o velho adorava dançar e sabia dançar muito bem. - Eu poderia ensinar-lhe uns passos - pensou consigo mesmo, mas não ousava revelar sua presença, temendo que os demónios o matassem. O rei-demónio tornou a perguntar se alguém sabia dançar e o velho continuava dividido entre seu amor pela dança e seu medo dos demónios. O rei-demónio perguntou uma terceira vez e o velho mandou seus receios às favas.
Saiu da árvore e curvou-se perante o chefe dos demónios.
- Eu sei dançar, meu senhor - disse e começou a fazê-lo.
Os demónios ficaram escandalizados por terem um homem em seu meio, mas, bem logo, admiraram a arte do velho. Começaram a marcar o ritmo com seus cascos, acompanhando a música e alguns se juntaram ao velho. Por sua vez, o velho sabia que sua vida dependia de ele dançar bem, de forma que pôs toda sua alma e todo seu coração em seus movimentos e divertiu-se, realmente. Quando parou, o rei-demónio aplaudiu e convidou-o a sentar-se ao seu lado, oferecendo-lhe um copo de vinho.
- Você precisa voltar amanhã para dançar para nós - o rei-demónio disse.
- Gostaria muito de vir - respondeu o velho.
Um dos conselheiros do rei admoestou-o. - Não se ode confiar nos homens. Precisamos ficar com algo que nos dê certeza de que ele vai voltar. - Infelizmente, o velho nada trazia de valor consigo.
- Bem, então - o rei-demónio disse - vou ficar com isto como penhor - e, estedendo a mão, agarrou a verruga do velho e arrancou-a com a facilidade de quem arranca um pessêgo maduro.
- Trate de voltar amanhã - ordenou, e todos os gnomos desapareceram.
O velho mal podia acreditar no que acontecera. Passou a mão pelo rosto e percebeu o quão suave - e simétrico! - estava. Ficou tão feliz, que foi para casa pulando, cantando - e dançando - durante todo o trajecto. A esposa, ao vê-lo livre da verruga, mostrou-se eufórica e ambos celebravam sua boa sorte.
Ora, o velho tinha um vizinho malvado e vaidoso que também tinha uma verruga e que nunca se cansara de procurar um tratamento para ela. Quando soube da celebração, foi espiar e ficou perplexo ao ver que a verruga do velho havia sumido. este homem invejosos imediatamente perguntou o que acontecera e o velho lhe contou a história dos demónios. O vizinho, então, insistiu para ir vê-los, no dia seguinte, em lugar do velho.
No dia seguinte, pois, o vizinho vaidoso rumou para as montanhas e encontrou a árvore oca, exactamente como o velho lhe dissera. E, sem sombra de dúvida, ao anoitecer, o bando de demónios apareceu.
- Onde está o velho que ia dançar para nós? - o rei-demônio perguntou. O mau vizinho rastejou para fora da árvore, tremendo de pavor. - Aqui estou! - disse e começou a dançar. Ele, no entanto, nunca havia aprendido a dançar; considerava a dança aviltante à sua dignidade de forma que apenas pulava de um lado para outro, agitando os braços. Ele achava que os demónios não iriam notar a diferença, porém o rei ficou ofendido.
- Mas que coisa horrível! - o rei-gnomo exclamou. - Você não está dançando como ontem! - O rei não atinara que estava tratando com outra pessoa porque, a seu ver, todos os humanos eram iguais. - Não dá para aguentar! - o rei-demónio gritou, afinal. Vasculhou o bolo e encontrou a verruga.
- Olhe, devolvo-lhe o penhor.
Dizendo isso, atirou a verruga no homem vaidoso e esta grudou-lhe no rosto e não havia dúvida: tinha duas verrugas, uma em cada face! Esgueirou-se para dentro de casa bem mais tarde da noite, e ninguém viu sua cara nunca mais porque, desse dia em diante, passou a usar um chapéu de abas largas, bem enfiado na cabeça.
Quanto ao velho que perdeu sua verruga, ele viveu ainda muito tempo e dançava quando se sentia feliz. O que, na verdade, acontecia quase sempre!

Lenda do Japão

Krishna




Krishna era da família real de Mathura - capital de um conjunto de três clãs: Vrishni, Andhaka e Bhoja - e o oitavo filho da princesa Devaki e o marido Vasudeva, um nobre da corte. No dia do casamento, como é de costume na tradição védica, o primo mais velho, Kamsa, ficou encarregado de conduzir Devaki e o esposo até a nova casa do jovem casal.
O rei Kamsa subiu ao trono após mandar prender o próprio pai, Ugrasena (rei da dinastia Bhoja). Kamsa é tido como um grande demônio, que pertencia à classe dos Kshatriyas (guerreiros), mas que, de algum modo, havia se desviado do Dharma universal.
No caminho que conduzia os noivos até a nova casa, Kamsa escutou uma voz que dizia que o oitavo filho de Devaki iria levá-lo à morte. Imediatamente fez menção de matar Devaki, mas Vasudeva implorou pela vida da esposa, prometendo que cada filho que nascesse, seria levado à presença de Kamsa.
Receoso, mandou prender Vasudeva e a esposa no porão do castelo, sendo vigiados dia e noite por guardas. Cada filho do casal que nascia era morto por Kamsa, que mesmo sabendo que a profecia se cumpriria apenas no oitavo filho, não tinha piedade de nenhum e matava a todos.
Kamsa havia sido alertado por Narada Muni que em breve Vishnu nasceria na família de Vasudeva. Soube também, através deste sábio, que em uma encarnação anterior, Kamsa havia sido um demônio chamado Kalanemi que tinha sido morto por Vishnu.
Conta a tradição védica que Kamsa, temendo que Vishnu nascesse em qualquer uma das famílias do reino, mandou matar todos os meninos com até dois anos de idade, a fim de evitar o cumprimento da profecia.
E foi então que o oitavo filho de Devaki nasceu - Bhagavan Sri Krishna. O local do nascimento é conhecido atualmente como Krishnajanmabhoomi, onde um templo foi erguido em honra. Como a vida corria risco na prisão, foi tirado da prisão e entregue aos pais adotivos Yashoda e Nanda em Gokula.

05/10/2010

A pulga e o carneiro

Certo dia, uma pulga que morava no pêlo macio de um cachorro, sentiu um agradável cheiro de lã.
- Que será isso?
Deu um salto e viu que o cachorro adormecera encostado à pele de um carneiro.
- Esta pele é exactamente o que preciso - disse a pulga - é mais espessa e mais macia, e principalmente mais segura. Não corro o risco de ser encontrada pelas patas e pelos dentes do cachorro, que a toda hora me procuram. E a pele do carneiro deve ser, certamente, mais agradável.
Então, sem mais pensar, a pulga mudou-se de casa, saltando das costas do cachorro para a pele do carneiro. Porém a lã era espessa, tão espessa que era difícil atravessá-la para chegar até a pele. Tentou e tornou a tentar, separando pacientemente os fios, procurando laboriosamente um caminho. finalmente atingiu as raízes dos pelos, mas eles eram tão juntos que ficavam praticamente encostados uns nos outros.
A pulga não encontrou sequer um furinho através do qual pudesse atingir a pele do animal.
Cansada, banhada em suor e profundamente desapontada, a pulga resignou-se a voltar para o cachorro. Porém o cachorro não estava mais lá.
Pobre pulga! Chorou dias a fio de arrependimento por seu erro.


Fábulas de Leonardo da Vinci



04/10/2010

A Lenda dos Aloendros



Reza a lenda que um cavaleiro de nome Dom João Peres de Aboim se encantou por uma princesa moura chamada Alhandra.
Estávamos na época da conquista da cidade de Faro aos Mouros, em 1249, sob o comando do rei Dom Afonso III. Os Portugueses queriam entrar nas muralhas e Alhandra ajudou Dom João Peres de Aboim a entrar, sob a condição de ele não matar nem mulheres, nem crianças e em troca poderia tê-la a seu lado.
O cavaleiro cumpriu o prometido. Quando chegou a casa em vez da princesa prometida, estava ali enviado pela princesa um lindo ramo de aloendros vermelhos. Dom João Peres de Aboim, perdidamente apaixonado, chorou e de seus olhos brotaram lágrimas de sangue pela amargura de ter perdido o seu amor.
Dizem que o rei mouro a encantou no arco do repouso, por ela ter traído o seu povo e que quem andar sobre as pedras da estrada até ao largo Dom Afonso III, vislumbra sombras de mouras encantadas.

02/10/2010

A Tomada do Castelo de Aljezur



D. Paio Peres Correa, conhecedor da situação privilegiada da velha fortaleza e da vigilância apertada que os moiros exerciam, mandou batedores no intuito da estudar as características do local e os hábitos das gentes, com vista à elaboração do seu plano de ataque.
Conseguiram “aliciar” uma moira de nome Maria Aires, de raro encanto, que lhes contou, como era costume e habito muito antigo e ainda observado, na madrugada do dia 24 de Junho os habitantes da região irem tomar banho à Praia da Amoreira.
Tanto bastou para que D. Paio arquitectasse o seu plano de ataque, tirando proveito daquela tradição moirisca.
Assim, na noite de 23 para 24 de Junho, as nossas tropas esconderam-se num vale próximo do castelo que hoje é conhecido pelo Vale de D. Sancho, em honra daquele nosso valoroso Monarca (D. Sancho II) e aguardaram que, com o amanhecer, os moiros iniciassem o seu ritual.

Mulla Nasrudin



Mulla Nasrudin sonhou que estava no céu e que tudo à sua volta era muito bonito e fácil. Só encontrava beleza e não precisava fazer esforço para nada, bastava desejar alguma coisa - qualquer coisa - e ela aparecia.
Nasrudin tinha tudo que queria e estava super-satisfeito, os milagres aconteciam sempre que desejava. Foi bom demais por algum tempo, até que ele começou a se entediar, deixou de achar graça naquela vida. Aí resolveu procurar algum problema, qualquer situação que lhe aborrecesse ou até lhe fizesse ficar deprimido, porque já não suportava mais tanta maravilha.
Não encontrou nada que o perturbasse. Passou a procurar um trabalho para fazer, uma responsabilidade qualquer e não havia nada, porque era perfeito.
No seu sonho Mulla Nasrudin gritou:
- Não aguento mais! Estou cheio de não fazer nada e de ter tudo! Preferiria estar no Inferno!
E uma voz lhe respondeu:
- E onde é que você pensa que está?
Por isso é que é isso: o céu e o inferno não são localizados geograficamente; mas emocional e psicologicamente. Cada um faz seu céu ou inferno no seu espaço interior.

No momento em que você compreender que o céu ou o inferno estão somente dentro de você, poderá mudar inteiramente a sua vida. Enquanto não compreender, não haverá transformação.


01/10/2010

O burro e o leão



O burro andava muito feliz. Sentia-se o rei da criação, isto é, o rei das galinhas, dos patos e dos perus do quintal onde vivia. E também das cabras, dos porcos e das ovelhas, porque aquele quintal era muito povoado.
Quando ele zurrava, todos fugiam.
As zurradelas do burro, realmente, eram de tal força, que assustavam qualquer bichinho. Até o cão se afastava, em sinal de respeito.
- Nunca imaginei que possuísse tanto poder? - dizia de si para si o burro, todo inchado de bazófia.
E fartava-se de zurrar, a torto e a direito, clamando que era ele o rei? iam-iam!.. o rei? dos? iam-iam!... dos animais? iam-iam!
Vozes de burro não chegam ao céu, diz-se, mas chegaram aos ouvidos do leão.
- Não sabia que tinha concorrentes de tamanha qualidade - disse ele, num breve rugido de ironia.
Estava bem-disposto o leão. Tinha-se refastelado com um suculento almoço de carne de javali, entremeado com o resto de um cabrito, que sobrara do jantar anterior. Tão cedo não ia ter vontade de comer e muito menos de comer carne de burro, que enjoava. O leão era de gostos mais apurados.
Sua Majestade espreguiçou-se, arrotou (com licença!) e disse:
- Vamos lá visitar esse fenómeno que se proclamou o rei dos animais.
Encontrou o burro a pastar num outeiro, não longe do quintal, onde tinha estábulo.
O burro, quando o viu, estremeceu, mas não quis dar parte fraca. Nem parecia bem que um rei, coroado de tão altas orelhas, sinal de majestade, fugisse diante de um animal de quem se não viam as orelhas, escondidas pela farta juba. O burro tinha a coragem dos simples. E dos ignorantes.
- Constou-me - começou o leão -, constou-me que te intitulas o rei dos animais. É verdade?
- É - respondeu, singelamente, o burro.
- Em que te baseias para ostentar o título? Donde te vem tal pretensão? Os teus pais ou os teus avós já eram reis da natureza animal? - questionou o leão, não sustendo a cólera. - Quantos reis burros houve antes de ti?
- Iniciei a dinastia - explicou o burro. - Iniciei a dinastia, com a força da minha voz. Queres ver?
- Estou cheio de curiosidade - disse o leão, sentando-se nas patas traseiras. - Demonstra-me, então, os teus predicados reais.
O burro repuxou o ar para os pulmões e, do alto do outeiro, trombeteou uma zurradela tão poderosa que gafanhotos, perdizes, estorninhos, lebres e coelhos do mato saltaram de todos os lados, num grande alarme. Lá longe, no quintal, os galináceos mandaram as galinhas para a capoeira e eles correram atrás. O mesmo fizeram os patos e os perus. Zurrar do burro equivalia a sirene dos bombeiros ou toque de recolher.
- A minha voz não tem igual. Assusto a bicharada em meu redor, como acabo de demonstrar - disse o burro, tossicando de importância.
- Efectivamente, possuis uma voz, que faz tremer as folhas - reconheceu o leão. - E como vamos de sombra?
- De sombra? - intrigou-se o burro.
- Sim, de sombra - insistiu o leão. - Queres reparar? Ora toma atenção.
Aqui o leão interpôs o corpo entre o sol e o quintal. A sua sombra majestosa projectou-se sobre a capoeira, a coelheira, o estábulo e o cortelho. Um vozear de pânico despegou-se da natureza, fosse brava ou mansa:
- O leão! - como o rolar de trovoada ao longe.
Depois, fez-se silêncio e frio, nem que tivesse descido, repentinamente, a noite. Até as cigarras pararam de serrar o sol.
O burro sentiu esse raio paralisante, que atravessava tudo, e borrou-se de medo.
Já o leão se afastava, pausada e majestosamente. Não precisava de dizer mais nada. A verdadeira grandeza dispensa zurradelas.
Em sentido contrário ao do leão, o burro, de orelhas caídas, desceu o outeiro, em direcção ao quintal. Recolhia à estrebaria e levava muito em que pensar.