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31/01/2008

João Pequenito

Um homem pobre, que tinha três filhos, sugeriu-lhes que fossem correr mundo em busca de fortuna, pois ele não lhes podia dar nada. Os filhos partiram, chegando à corte de um rei turco muito malvado. O rei os recebeu no palácio e os botou para dormirem na cama de suas três filhas, cobertos por uma carapuça, para que fossem mortos durante a noite. O irmão mais jovem, João Pequenito, levantou-se à noite, retirou a carapuça da cabeça dos rapazes e colocou-as nas cabeças das filhas do rei, fugindo do palácio com os irmãos. Quando já estavam muito longe, João disse aos outros dois que eles deveriam separar-se. Pequenito foi ao palácio de um rei, oferecendo-se para ser seu criado, sendo nomeado jardineiro. Sendo um ótimo empregado, o rei o estimava mais do que aos outros criados, que começaram a ter muita inveja de João. Tanta que foram dizer ao rei que Pequenito dissera ser capaz de ir roubar uma bolsa de ouro que ficava à cabeceira do rei turco, o malvado. Ao ser interrogado pelo rei, o jovem disse que iria, sem problemas. Chegando ao palácio do turco, subiu pela parede, entrou pela janela, tirou a bolsa debaixo do travesseiro enquanto o rei malvado dormia e fugiu. Porém, o papagaio começou a gritar e o malvado acordou. Como joão já fosse muito longe, o turco perguntou da janela se ele voltaria, ao que o jovem respondeu que sim. Depois de alguns dias, os invejosos foram dizer ao rei que o Pequenito afirmara ser capaz de roubar a coberta de campainhas do turco. Ao ser questionado, o jardineiro disse que iria. A situação repetiu-se como da primeira vez e João levou a coberta ao rei, que ficou cada vez mais encantado com o rapaz. Então, os invejosos falaram que o Pequenito disse que pegaria o papagaio do turco. O jovem, sem nenhuma dúvida, foi em busca do papagaio. Finalmente, os invejosos disseram que, desta vez, João furtaria o rei turco. O rei, então, lhe garantiu que se ele trouxesse o turco, casaria com a princesa sua filha. João pediu um exército e alguns navios e partiu. Foi ao palácio do malvado, envolveu-o nas roupas de cama, desceu com ele pela janela e lá foi à frente de seu exército, levando o turco ao seu amo. Pequenito casou com a princesa e mandou buscar seus pais e irmãos para viverem consigo na corte.

Pequena Sereia



BEM no fundo do mar a água é azul como as folhas das centáureas, pura como o cristal mais transparente, mas tão transparente, mas tão profunda que seria inútil jogar ali a âncora e, para medi-la, seria preciso colocar uma quantidade enorme de torres de igreja umas sobre as outras a fim de verificar a distância que vai do fundo à superfície.
Lá é a morada do povo do mar. Mas não pensem que esse fundo se compõe somente de areia branca; não, ali crescem plantas e árvores estranhas e tão leves, que o menor movimento da água faz com que elas se agitem, como se estivessem vivas. Todos os peixes, grandes e pequenos, vão e vêm entre seus galhos, assim como os pássaros o fazem no ar.
No lugar mais profundo está o castelo do rei do mar, cujos muros são de coral, as janelas de âmbar amarelo e o teto é feito de conchas que se abrem e fecham para receber a água e para despejá-la. Cada uma dessas conchas encerra pérolas brilhantes e a menor delas honraria a mais bela coroa de qualquer rainha.
Há muitos anos que o rei do mar estava viúvo e sua velha mãe dirigia a casa. Era uma mulher espiritual, mas tão orgulhosa de sua linhagem, que usava doze ostras na cauda, enquanto que as outras grandes personagens não usavam senão seis.
Ela merecia elogios, pelos cuidados que tinha para com as suas netas bem-amadas, todas princesas encantadoras.
No entanto, a mais moça era ainda mais linda do que as outras; sua pele era suave e transparente como uma folha de rosa, seus olhos eram azuis como um lago profundo seus longos cabelos louros como o trigo; todavia, não possuía pés: assim como suas irmãs, seu corpo terminava por uma cauda de peixe.
Durante o dia inteiro, as crianças brincavam nas grandes salas do castelo, onde flores viçosas apareciam entre os muros. Assim que se abriam as janelas de âmbar amarelo, os peixes entravam como fazem os pássaros connosco e comiam na mão das pequenas princesas, que os acariciavam.
Em frente ao castelo havia um grande jardim com árvores de um azul profundo e um vermelho de fogo. Os frutos brilhavam como se fossem de ouro, e as flores, agitando sem cessar suas hastes e suas folhas, assemelhavam-se a pequenas chamas.
O solo se compunha de areia branca e fina, ornado aqui e ali de delicadas conchas e uma luminosidade azul maravilhosa, que se espalhava por todos os lados, dava a impressão de se estar no ar, no meio do azul do céu, ao invés de se estar no mar. Nos dias de calmaria, podia-se perceber a, luz do sol, semelhante a uma pequena flor cor de púrpura que despejasse a luz de sua corola.
Cada uma das princesas tinha seu terreno no jardim, o qual ela cultivava a seu belo prazer.
Uma lhe dava a forma de uma baleia, a outra, a de uma sereia; mas a menor fez o seu em forma de sol e plantou nele flores rubras como ele.
Era uma jovem estranha, silenciosa e pensativa.
Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados, ela se divertia olhando para uma estatueta de mármore branco, representando um rapaz encantador, colocada sob um chorão magnífico, cor-de-rosa, que a cobria de uma sombra cor de violeta.
Seu maior prazer era ouvir as estórias sobre o mundo em que viviam os homens. Todos os dias pedia à avó que lhe falasse dos objectos, das cidades, dos homens e dos animais.
Admirava-se, principalmente, de que na terra as flores exalassem um perfume que não havia sob a água do mar e de que as florestas fossem verdes. Enquanto suas irmãs brincavam com diferentes objectos provenientes dos navios naufragados... objectos, das cidades, dos homens e dos animais.
Não podia imaginar como é que os peixes cantassem e saltitassem entre as árvores. A avó os chamava de pássaros: assim mesmo, ela não compreendia.
“Quando você completar quinze anos”, disse a avó, “eu lhe darei permissão para subir à superfície do mar e de sentar-se ao luar sobre os rochedos, para ver os grandes navios passarem e para tomar conhecimento das florestas e das cidades. Você verá um mundo todo novo”.
No ano seguinte a primeira das jovens completaria quinze anos, e, como não havia senão um ano de diferença entre cada uma delas, a mais moça teria que esperar ainda cinco anos para subir à superfície do mar.
Mas uma prometia sempre à outra contar tudo, o que visse na sua primeira saída, pois o que a avo contava ainda era pouco e havia tantas coisas que elas ainda desejavam saber!
A mais curiosa era realmente a mais jovem; muitas vezes, durante a noite, ela ficava perto da janela aberta, tentando perceber os ruídos dos peixes que batiam suas nadadeiras e suas caudas. Olhava bem para o alto e conseguia ver as estrelas e a lua, mas elas lhe pareciam muito pálidas e muito aumentadas pelo efeito da água.
Assim que alguma nuvem as escurecia, ela sabia ser uma baleia ou um navio carregado de homens, que nadavam sobre ela. Certamente esses homens nem pensavam em que uma encantadora sereiazinha estendia suas mãos brancas para o casco do navio que fendia as águas.
Chegou finalmente o dia em que a princesa mais velha completou quinze anos; então ela subiu à superfície do mar, a fim de descobrir o mundo; o desconhecido. Ao voltar, estava cheia de coisas para contar. Oh! disse ela, é delicioso ver, estendida ao luar sobre um banco de areia, no meio do mar calmo, as praias da grande cidade, onde as luzes brilham como se fossem centenas de estrelas; ouvir a música harmoniosa, o som dos sinos das igrejas, e todo aquele barulho de homens e de seus carros!.
Oh! como sua irmãzinha ouvia atentamente!
Todas as noites, em frente da janela aberta, olhando através da enorme massa de água, ela sonhava longamente com a grande cidade, da qual a irmã mais velha falara com tanto entusiasmo, com seus ruídos e suas luzes, seus habitantes e seus edifícios e pensava ouvir os sinos tocarem bem perto dela.
No ano seguinte, a segunda obteve a permissão para subir. Muito contente, ela emergiu a cabeça no momento em que o céu tocava o horizonte e a magnificência desse espectáculo levou-a ao auge da alegria.
O céu inteiro, disse ela ao voltar, parecia ser de ouro e a beleza das nuvens estava além de tudo aquilo que podemos imaginar. Passavam à minha frente, vermelhas e roxas e no meio delas voava em direcção ao sol, como se fosse um longo véu branco, um bando de cisnes selvagens. Eu também quis nadar na direcção do grande astro vermelho; mas de repente ele desapareceu e também a luz rosada que havia em cima das águas e as nuvens desapareceram.
Depois chegou a vez da terceira irmã. Era a mais imprudente, e assim, subiu pela embocadura do rio e foi seguindo o seu curso. Avistou admiráveis colinas plantadas de vinhedos e árvores frutíferas, castelos e fazendas situados no meio de florestas soberbas e imensas.
Ouviu o canto dos pássaros e o calor do sol obrigou-a a mergulhar muitas vezes na água, a fim de refrescar-se.
No meio de uma baía, ela viu uma multidão de seres humanos que brincavam e se banhavam. Quis brincar com eles, mas todos se assustaram e um animal preto – era um cão – começou a latir com tanta força, que ela ficou com muito medo e fugiu para o mar alto.
A sereia jamais pôde esquecer as soberbas florestas, as colinas verdes e as gentis crianças que sabiam nadar, embora não possuíssem cauda de peixe.
A quarta irmã, que era menos afoita, gostou mais de ficar no meio do mar selvagem, onde a vista se perdia ao longe e onde o céu se arredondava em volta da água, como um grande sino de vidro. Percebia os navios ao longe; os delfins brincalhões davam cambalhotas e as baleias colossais lançavam jatos de água para o ar.
E o dia da quinta irmã chegou; estavam exactamente no inverno: e assim ela viu o que as outras não puderam ver. O mar perdera sua cor azul e adquirira um tom esverdeado e por todo lado navegavam, com formas estranhas e brilhantes como diamantes, montanhas de gelo. Cada uma delas, dizia a viajante, parece-se com uma pérola maior do que as torres da Igreja em que os homens são batizados.
Ela se sentou sobre uma das maiores e todos os navegadores fugiam daquele lugar, onde ela abandonava seus cabelos ao sabor do vento.
À noite, uma tempestade cobriu o céu de nuvens.
Os relâmpagos brilhavam, o trovão ribombava, enquanto que o mar, negro e agitado, elevava os grandes pedaços de gelo, fazendo-os brilhar ao clarão dos relâmpagos.
O terror espalhou-se por todos os lados; mas ela, tranquilamente sentada sobre a sua montanha de gelo, viu a tempestade cair em ziguezague sobre a água revolta.
A primeira vez que uma das irmãs subia à superfície, ficava sempre encantada com tudo o que via; mas depois de crescida, quando podia subir à vontade, o encanto desaparecia, ela dizia que lá em baixo era tudo melhor, que nada valia o seu lar. E renunciava bem depressa às suas viagens por lugares distantes.
Muitas vezes, as cinco irmãs, de mãos dadas, subiam à superfície do mar. Possuíam vozes encantadoras como nenhuma criatura humana poderia possuir, e, se por acaso algum navio cruzava o seu caminho, elas nadavam até ele entoando cantos magníficos sobre a beleza do fundo do mar, convidando os marinheiros a visitá-las.
Mas estes não podiam compreender as palavras das sereias e nunca viram as maravilhas que elas descreviam; e assim, quando o navio afundava, os homens se afogavam e somente seus cadáveres chegavam até o castelo do rei do mar.
Durante a ausência de suas cinco irmãs, a mais jovem ficava ao pé da janela, seguia-as com o olhar e tinha vontade de chorar. Mas uma sereia não chora, e assim, seu coração sofre muito mais.
– Oh! se eu tivesse quinze anos! – dizia ela: – Sinto desde já que amarei muito o mundo lá em cima e os homens que ali moram.
E chegou o dia em que ela também completou quinze anos.
“Você vai partir”, disse-lhe a avó e velha rainha: “venha, para que eu faça a sua toillete, assim como fiz a suas irmãs.”
E ela colocou em seus cabelos uma coroa de lírios brancos, em que cada folha era a metade de uma pérola; depois prendeu à cauda da princesa oito grandes ostras, para designar a sua linhagem elevada.
– Como elas me machucam!, – disse a sereiazinha.
– Quando se quer ser elegante é preciso sofrer um pouco, – replicou a velha rainha.
Entretanto, a sereiazinha teria dispensado todos esses luxos e a pesada coroa que levava na cabeça. Gostava muito mais das flores vermelhas de seu jardim; todavia, não ousava fazer observações.
“Adeus!”, disse ela; e, ligeira com uma bola de sabão, atravessou a água.
Assim que sua cabeça apareceu na superfície da água, o sol acabava de se deitar; mas as nuvens brilhavam ainda, como rosas de ouro e a estrela vespertina iluminava o meio do céu. O ar estava doce e fresco e o mar aprazível.
Perto da sereiazinha estava um navio de três mastros; não levava mais do que uma vela, por causa da calmaria e os marujos estavam sentados nas vergas e no cordame. A música e as canções ressoavam sem cessar e, a aproximação da noite, tudo ficou iluminado por cem lanternas penduradas por toda a parte: podia-se acreditar estar vendo as bandeiras de todas as nações.
A sereiazinha nadou até a janela do grande aposento, e, de cada vez que se alçava, percebia através dos vidros transparentes uma quantidade de homens magnificamente trajados. O mais belo deles era um jovem príncipe muito elegante, de longos cabelos negros, com a idade ao redor dos dezesseis anos e era para celebrar sua festa que todos aqueles preparativos estavam sendo realizados.
Os marujos dançavam no convés, e quando o jovem príncipe ali apareceu, cem tiros ecoaram no ar, desprendendo uma luz como aquela do dia.
A sereiazinha mergulhou imediatamente; mas assim que reapareceu, todas as estrelas do céu pareceram cair sobre ela. Ela nunca vira fogos de artifício; dois grandes sóis de fogo rodavam no ar, e todo o mar, puro e calmo, brilhava. Sobre o navio podia-se vislumbrar cada cordinha e melhor ainda, os homens. Oh! como o jovem príncipe era lindo! Ele apertava a mão de todos, falava e sorria a cada um, enquanto a música enviava para o ar os seus sons harmoniosos.
Já era muito tarde, mas a sereiazinha não se cansava de admirar o navio e o belo príncipe. As lanternas não brilhavam mais e os tiros de canhão já haviam cessado; todas as velas tinham sido içadas e o veleiro se afastava a grande velocidade. A princesa o seguiu, sem desviar os olhos das janelas.
Mas logo a seguir o mar começou a agitar-se; as ondas aumentaram e grandes nuvens negras se agrupavam no céu. À distância brilhavam os relâmpagos e uma terrível tempestade se preparava. O veleiro se balançava sobre a água do mar impetuoso, numa marcha rápida. As vagas rolavam sobre ele, tão altas como montanhas.
A sereiazinha continuou com a sua viagem acidentada; divertia-se bastante. Mas assim que o veleiro, sofrendo as conseqüências da tempestade, começou a estalar e a adernar, ela compreendeu o perigo e teve que tomar cuidado para não ferir-se nos pedaços de madeira que vinham até ela.
Por um instante fez-se uma tal escuridão, que não se avistava absolutamente nada; outras vezes, os relâmpagos tornavam visíveis os menores detalhes da cena.
A agitação tomara conta do pessoal do navio; mais uma sacudidela! ouviu-se um grande barulho e o barco partiu-se ao meio; e a sereiazinha viu o príncipe mergulhar no mar profundo.
Louca de alegria, ela imaginou que ele fosse visitar a sua morada; mas depois lembrou-se de que os homens não podem viver dentro da água e que, em conseqüência, ele chegaria morto ao castelo de seu pai.
Então, para salvá-lo, ela atravessou a nado a distância que a separava do príncipe, passando pelos destroços do navio, arriscando-se a se machucar, mergulhou profundamente nas águas por várias vezes e assim pôde chegar até o jovem príncipe, justamente no instante em que suas forças começavam a abandoná-lo e quando ele já fechava os olhos, a ponto de estar para morrer.
A sereiazinha levou para o alto das águas, sustentou sua cabeça fora delas, depois abandonou-se com ele ao capricho das ondas.
Na manhã seguinte o bom tempo voltou, mas já quase nada restava do veleiro. Um sol vermelho, de raios penetrantes, parecia chamar à vida o jovem príncipe, mas seu olhos continuavam cerrados. A sereiazinha depositou um beijo em sua fronte e ergueu seus cabelos molhados.
Achou-o parecido com a sua estátua de mármore do jardim e rezou pela sua saúde. Passou em frente à terra firme, coberta por altas montanhas azuis, no alto das quais brilhava a neve branca. Perto da costa, no meio de uma soberba floresta verde, havia uma cidade com uma igreja e um convento.
As casas possuíam os tetos vermelhos. Em volta das casas havia grandes palmeiras e os pomares estavam cheios de laranjeiras e limoeiros; não longe dali o mar formava um pequeno golfo, entrando por um rochedo coberto de fina areia branca.
Foi ali que a sereia colocou o príncipe com cuidado, tomando cautela para que ele ficasse com a cabeça alta e pudesse receber os raios do sol. Pouco a pouco as cores foram voltando ao rosto do príncipe desmaiado.
Daí a pouco os sinos da igreja começaram a tocar e uma quantidade enorme de moças apareceu nos jardins.
A sereiazinha afastou-se nadando e escondeu-se atrás de umas grandes pedras para observar o que acontecia ao jovem príncipe.
Logo depois, uma das moças passou por ele; no início pareceu assustar-se, mas logo a seguir, foi buscar outras pessoas, que começaram a tratar do príncipe.
A sereia viu-o recobrar os sentidos e sorrir a todos aqueles que tratavam dele; só não sorriu para ela, pois não sabia que o havia salvo. E assim, logo que o viu ser conduzido para uma grande mansão, ela mergulhou tristemente e voltou para o castelo de seu pai.
A sereiazinha sempre fora silenciosa e pensativa; a partir desse dia, ficou muito mais ainda. Suas irmãs perguntaram-lhe o que ela vira lá em cima, mas ela não quis contar nada.
Mais de uma vez, à noite e pela manhã, ela voltou ao lugar onde deixara o príncipe. Viu as flores morrerem, os frutos do jardim amadurecerem, viu a neve desaparecer das altas montanhas, mas jamais viu o príncipe; e voltou cada vez mais triste para o fundo do mar.
Lá, seu único consolo era sentar-se em seu pequeno jardim e abraçar a linda estatueta de mármore que se parecia tanto com o príncipe, enquanto que suas flores negligenciadas e esquecidas, cresciam pelas aléias como umas selvagens, entrelaçavam seus longos galhos nos ramos das árvores, formando uma pequena floresta que obscurecia tudo.
Finalmente essa existência tornou-se insuportável; e ela contou tudo a uma de suas irmãs, que o contou às outras, as quais repetiram a estória a algumas amigas íntimas. E acontece que uma destas, que também vira a festa do navio, conhecia o príncipe e sabia onde estava situado o seu reino.
“Venha, irmãzinha”, disseram as princesas; e, passando os braços por suas costas, carregaram com a sereiazinha pelo mar em fora, e depositaram-na em frente ao castelo do príncipe.
O castelo era construído de pedras amarelas e luzidias; grande escadaria de mármore levava até o jardim; galerias imensas estavam ornamentadas com estátuas de mármore que pareciam vivas. As salas, magníficas, eram ornamentadas de quadros e tapeçarias incomparáveis e as paredes estavam cobertas de quadros maravilhosos.
No grande salão, o sol iluminava, através de uma grande janela de vidro, as plantas mais raras, que estavam num grande vaso e embaixo de vários jactos de água.
Desde então, a sereiazinha começou a ir a esse lugar, tanto durante o dia, como à noite; aproximava-se da costa, ousava mesmo sentar-se sob a grande varanda de mármore que projectava uma sombra em seus olhos; muitas vezes, ao som da música, o príncipe passava por ela em seu barco florido, mas ao ver seu véu branco em meio aos arbustos verdes, pensava tratar-se de um cisne ao abrir suas asas.
Ela ouvia também os pescadores falarem muito bem do jovem príncipe e então ela ficava feliz de lhe ter salvo a vida, o que, aliás, ele ignorava completamente.
Sua afeição pelos homens crescia dia a dia e cada vez mais ela desejava se elevar até eles. Seu mundo lhe parecia muito mais vasto do que o dela; eles sabiam navegar pelos mares com seus navios, subir pelas altas montanhas até as nuvens; eles possuíam imensas florestas e campos verdejantes.
Suas irmãs não podiam satisfazer toda a sua curiosidade, então ela perguntou à sua velha avo, que conhecia muito o mundo mais elevado, o que muito justamente era chamado de país à beira-mar.
– Os homens vivem eternamente?, – perguntou a jovem princesa. – Eles não morrem assim como nós?
– Sem dúvida, – respondia a velha, eles morrem e sua existência é mesmo mais curta do que a nossa. Nós outros vivemos algumas vezes trezentos anos; depois, ao morrermos, nós nos transformamos em espuma, pois no fundo do mar não existem túmulos para receberem os corpos inanimados. Nossa alma não é imortal; depois da morte está tudo acabado. Nós somos com as rosas verdes: uma vez cortadas, não florescem mais! Os homens, pelo contrário, possuem uma alma que vive eternamente, que vive mesmo depois que seus corpos viram cinzas; essa alma voa até o céu e vai até as estrelas que brilham e mesmo que nós possamos sair da água e ir até o pais dos homens, não podemos ir a certos lugares maravilhosos e imensos, que são inacessíveis ao povo do mar.
– E por que não possuímos a mesma alma imortal? – pergunta a sereiazinha muito aflita – eu daria de boa vontade as centenas de anos que ainda tenho que viver para ser homem, nem que fosse por um dia e partir depois para o mundo celeste.
– Não pense em semelhantes tolices – replicou a velha – nós somos muito mais felizes aqui embaixo, do que os homens lá em cima.
– No entanto, chegará o dia em que deverei morrer. Não serei mais do que uma espuminha; para mim, não mais o murmúrio das vagas, nada de flores nem de sol! Não há nenhum meio de conquistar uma alma imortal?
– Somente um, mas é quase impossível. Seria preciso que um homem concebesse por você um amor infinito, que você lhe fosse mais cara do que seu pai ou sua mãe. Então, agarrado a você com toda a sua alma e o seu coração, ele unisse sua mão à de você com o testemunho de um padre, jurando fidelidade eterna, sua alma se comunicaria ao seu corpo e você seria admitida na felicidade dos homens. Mas jamais isso poderá ser feito! O que é considerado mais lindo aqui no mar, que é a sua cauda de peixe, eles acham detestável na terra. Pobres homens! Para serem lindos acham que precisam daqueles suportes grosseiros que chamam de pernas!
A sereiazinha suspirou tristemente, olhando para a ua cauda de peixe.
Sejamos alegres!, diz a velha, saltemos e nos divirtamos durante os trezentos anos de nossa existência; é um lapso de tempo muito agradável e nós conversaremos mais tarde. Esta noite há um baile na corte.
Não se pode fazer idéia na terra de uma tal magnificência. A grande sala de baile era inteira de cristal; milhares de ostras enormes, colocadas de cada lado, nos muros também transparentes, iluminavam o mar a grande distância. Viam-se muitos peixes nadando, grandes e pequenos, cobertos de escamas luzentes como a púrpura, como ouro e prata.
No meio da sala corria um grande rio no qual dançavam os delfins e as sereias, ao som de sua própria voz que era maravilhosa. A sereiazinha era a que cantava melhor e ela foi tão aplaudida, que, por um instante, sua alegria fez com que esquecesse as maravilhas da terra.
Mas dentro em breve ela retornou à sua tristeza, pensando no belo príncipe e na sua alma imortal. Abandonou os cantos e os risos, saiu silenciosamente do castelo e sentou-se no seu pequeno jardim. De lá ela ouvia o som dos coros, que atravessava a água.
Eis que passa, aquele que eu amo de todo o meu coração, aquele que ocupa todos os meus pensamentos e a quem eu desejaria confiar minha vida! Arriscaria tudo por ele e para ganhar uma alma imortal. Enquanto minhas irmãs dançam no castelo de meu pai, eu vou procurar a feiticeira do mar, que eu tanto temi até agora. Talvez ela possa me dar conselhos e ajudar-me.
E a sereiazinha, saindo de seu jardim, dirigiu-se para as rochas escuras onde vivia a feiticeira. Jamais ela seguira por esse caminho. Não havia nem uma flor nem uma árvore. No fundo, a areia cinzenta e lisa, formava um redemoinho.
A princesa viu-se obrigada a atravessar esse terrível turbilhão para chegar aos domínios da feiticeira, onde sua casa se elevava no meio da mais estranha floresta.
Todas as árvores e as rochas não eram mais do que polidos, metade animal metade planta, parecidos com as serpentes que saem da terra.
Os galhos eram braços ondeantes, terminados por dedos em forma de copos, que se mexiam continuamente.
Esses braços agarravam tudo que aparecia à sua frente e não os largavam mais.
A sereiazinha, tomada de pavor, teve vontade de retroceder; todavia, ao pensar no príncipe e na sua alma imortal, armou-se de toda a sua coragem. Prendeu seu cabelo em torno da cabeça, para que os pólipos não a pudessem agarrar, cruzou os braços no peito e nadou assim, entre aquelas horríveis criaturas.
Chegou finalmente a um grande lugar no meio daquela floresta, onde enormes serpentes do mar mostravam seus ventres amarelos. No meio do local estava a casa da feiticeira, construída com ossos de náufragos, e onde a feiticeira, sentada numa grande pedra, dava de comer a um grande sapo, assim como os homens dão migalhas aos passarinhos. Chamava suas serpentes de meus franguinhos e se divertia fazendo-as rolarem sobre seus ventres amarelos.
“Sei o que você deseja”, falou ela ao ver a princezinha; “seus desejos são idiotas; de qualquer forma, eu os satisfarei, mesmo sabendo que eles só lhe trarão infelicidade. Você quer desembaraçar-se dessa cauda de peixe e trocá-la por duas peças daquelas com que marcham os homens, a fim de que o príncipe se apaixone por você, case-se com você e lhe dê uma alma imortal.”
Ao dizer isso, ela deu uma gargalhada espantosa, que fez com que o sapo e as serpentes rolassem no chão.
– Afinal, você fez bem em vir; amanhã, ao nascer do sol, vou preparar-lhe um elixir que você levará para terra. Sente-se na costa e beba-o. Logo a sua cauda se dividirá, transformando naquilo que os homens chamam de duas belas pernas. Mas eu lhe aviso que isso lhe fará sofrer como se lhe cortassem com uma espada afiada. Todo mundo admirará a sua beleza, você conservará sua marcha ligeira e graciosa, mas cada um de seus passos doerá tanto, como se você caminhasse sobre espinhos, fazendo o sangue correr. Se estiver disposta a sofrer tanto, eu poderei ajudá-la.
– Suportarei tudo!, – disse a sereia com voz trêmula, pensando no príncipe e na alma imortal.
– Mas não se esqueça de que, – continuou a feiticeira –, uma vez transformada em ser humano, você não poderá voltar a ser uma sereia! Você nunca mais verá o castelo de seu pai; e se o príncipe, esquecendo-se de seu pai e de sua mãe, não se apegar a você de todo o coração e não se unir a você em casamento, você jamais terá uma alma imortal – No dia em que ele se casar com uma outra mulher, seu coração se quebrará e você não será mais do que uma espuma no alto das vagas.
– Concordo – disse a princesa, pálida como uma morta.
– Nesse caso – prosseguiu a feiticeira é preciso que você me pague; e eu não lhe peço pouca coisa. Sua voz é a mais linda do os sons do mar, você pensa com ela encantar o príncipe, mas é justamente a sua voz que eu exijo como pagamento. Desejo o que você tem de mais precioso, em troca do meu elixir; porque, para torná-lo bem eficaz, eu tenho que jogar dentro dele o meu próprio sangue.
– Mas se você tomar a minha voz, – perguntou a sereiazinha – que me restará?
– Sua figura encantadora – respondeu a feiticeira –, seu caminhar leve e gracioso e seus olhos expressivos, isso é mais do que suficiente para enfeitiçar qualquer homem. Vamos! Coragem! Estire a língua para que eu a corte, depois lhe darei o elixir.
– Seja – respondeu a princesa e a feiticeira cortou-lhe a língua. A pobre menina ficou muda.
A seguir, a feiticeira colocou seu caldeirão no fogo para fazer ferver o seu magico elixir.
– A propriedade é uma bela coisa – disse ela apanhando um pacote de víboras para limpar o caldeirão. Depois, dando um talho com a faca em seu próprio peito, deixou cair seu negro sangue dentro do caldeirão.
Um vapor elevou-se, formando figuras estranhas e assustadoras. A cada instante a velha juntava mais ingredientes e quando tudo começou a ferver, ela acrescentou um pó feito de dentes de crocodilo. Uma vez pronto, o elixir tornou-se totalmente transparente.
“Aqui está”, disse a feiticeira, depois de ter derramado o elixir num frasco. “Se os pólipos quiseram agarrá-la ao sair, basta jogar-lhes uma gota desta bebida e eles se farão em mil pedaços.”
Este conselho foi inútil; pois os pólipos, apercebendo-se do elixir nas mãos da sereia, recuaram assustados. E assim, ela pôde atravessar sem sustos a floresta e os redemoinhos.
Quando chegou ao castelo de seu pai, as luzes da grande sala de danças estavam apagadas; todo mundo dormia, mas ela não ousou entrar.
Não podia falar com eles e logo iria deixá-los para sempre – Parecia que seu coração se partia de dor. A seguir foi até seu jardim, colheu uma flor de cada um dos de suas irmãs, enviou uma porção de beijos ao castelo e subiu à superfície do mar, afastando-se para sempre.
O sol ainda não estava alto, quando ela chegou ao castelo do príncipe. Sentou-se na praia e bebeu o elixir; foi como se uma espada afiada penetrasse em seu corpo; ela desmaiou e ficou estendida na areia como morta.
O sol já estava alto quando ela acordou sentindo uma dor cruciante. Mas à sua frente estava o príncipe encostado a um rochedo, lançando sobre ela um olhar cheio de admiração. A sereiazinha baixou os olhos e então viu que a sua cauda de peixe desaparecera, dando lugar a duas pernas brancas e graciosas.
O príncipe perguntou-lhe quem era ela e de onde vinha; ela fitou-o com um olhar doce e aflito, sem poder dizer uma só palavra. Depois o jovem a tomou pela mão e levou-a para o castelo. Assim como dissera a feiticeira, a cada passo que ela dava, sentia dores atrozes; entretanto, subiu a escadaria de mármore pelo braço do príncipe, leve como uma bola de sabão e todos admiraram o seu andar gracioso. Vestiram-na de seda, sem deixarem de admirar a sua beleza; mas ela continuava muda. Escravas vestidas de ouro e prata cantavam para o príncipe; ele aplaudia e sorria para a jovem.
Se ele soubesse, pensava ela, que por ele eu sacrifiquei uma voz mais linda ainda!
Depois de cantarem, as escravas dançaram. Mas assim que a pequena sereia começou a dançar nas pontas dos pés, quase sem tocar o solo, todos ficaram extasiados. Nunca haviam visto uma dança mais linda e harmoniosa. O príncipe pediu-lhe que não o deixasse mais e permitiu-lhe que dormisse à sua porta, numa almofada de veludo. Todos ignoravam o seu sofrimento ao dançar.
No dia seguinte o príncipe lhe deu um traje de amazona para que ela o seguisse a cavalo. Depois de terem saído da cidade aclamados pelos súditos do príncipe, eles atravessaram prados cheios de flores, florestas perfumadas e alcançaram altas montanhas; e a princesa, rindo-se, sentia seus pés arde-rem.
A noite, enquanto os outros dormiam, ela descia secretamente a escadaria de mármore e ia até a praia, a fim de refrescar os pés doridos na água fria do mar e a lembrança de sua pátria vinha ao seu espírito.
Uma noite, ela viu suas irmãs de mãos dadas; cantavam tão tristemente ao nadarem, que a sereiazinha não pôde deixar de fazer-lhes um sinal. Tendo-a reconhecido, elas lhe contaram como ela havia deixado todos tristes. Todas as noites elas voltavam e uma vez chegaram a levar a avó, que há muitos anos não punha a cabeça na superfície e o rei do mar com a sua coroa de coral. Os dois estenderam as mãos para a filha; mas não ousaram, assim como as irmã, aproximar-se da praia.
Cada dia que se passava o príncipe mais a amava, como se ama uma criança bondosa e gentil, sem ter a idéia de transformá-la em sua esposa. No entanto, para que ela tivesse uma alma imortal, era preciso que ele se casasse com ela.
– Não me ama mais do que a todas as outras? – eis o que pareciam dizer os olhos tristes da pequena muda, quando o tomava nos braços e depositava um beijo na sua fronte.
– É claro que sim – respondia o príncipe – pois você possui o melhor coração de todas; você é mais devotada e se parece com a jovem que eu encontrei um dia, mas que talvez não veja nunca mais. Quando eu estava num navio, sofri um naufrágio e fui depositado em terra pelas ondas, perto de um convento habitado por muitas jovens. A mais moça delas encontrou-me na praia e me salvou a vida, mas eu a vi somente duas vezes. Jamais neste mundo, eu poderia amar outra que não a ela; pois bem! Você se parece com ela, muitas vezes chega mesmo a substituir a imagem dela em meu coração.
Ai de mim!, pensou a sereiazinha, ele ignora ter sido eu a salvá-lo, e a colocá-lo perto do convento. Ama uma outra! No entanto, essa jovem está encerrada num convento e jamais sai; talvez ele a esqueça por mim, por mim que o amarei sem-pre e lhe devotarei toda a minha vida.
“0 príncipe vai-se casar com a linda filha do rei vizinho”, disseram um dia; “está equipando um soberbo navio sob o pretexto de visitar o rei, mas a verdade é que ele vai-se casar com a filha”.
Isso fez a princesa sorrir, pois ela sabia melhor do que ninguém quais os pensamentos do príncipe. Ele lhe dissera: “já que meus pais exigem, irei conhecer a princesa, mas jamais eles farão com que eu a tome em minha esposa. Não posso amá-la; ela não se parece, como você, com a jovem do convento e eu preferiria casar com você, pobre menina abandonada, de olhos tão expressivos, malgrado o seu eterno silêncio”.
E, depois de falar dessa maneira, ele depositou um beijo em seus longos cabelos.
O príncipe partiu.
“Espero que você não tenha medo do mar”, disse-lhe ele no navio que os levava.
A seguir falou-lhe nas tempestades e no mar furioso, nos estranhos peixes e em tudo que se encontrava no fundo do mar. Essas conversas faziam-na sorrir, pois ela conhecia o fundo do mar melhor do que qualquer outra pessoa.
Sob o luar, quando os outros dormiam, ela, então, se sentava na amurada do navio e alongava seu olhar através da transparência da água, acreditando perceber o castelo de seu pai e os olhos de sua avó fixados na quilha do navio. Uma noite suas irmãs apareceram; olharam-na tristemente agitando as mãos.
A jovem chamou-as por sinais e esforçou-se por dar-lhes a entender que tudo ia bem; mas no mesmo instante um grumete se aproximou e elas desapareceram, fazendo crer ao pequeno marujo que ele vira uma espuma no mar.
No dia seguinte o navio entrou no porto da cidade em que morava o rei vizinho. Todos os sinos repicaram, a música enchia a cidade e os soldados, no alto das torres, balançavam as suas bandeiras. Todos os dias havia festas, bailes e noitadas; mas a princesa ainda não chegara do convento, onde recebera uma brilhante educação.
A sereiazinha estava muito curiosa para ver a sua beleza e, finalmente, teve essa satisfação. Teve de reconhecer jamais ter visto uma tão linda figura, uma pele tão branca e olhos negros tão sedutores.
É você!, gritou o príncipe ao vê-la, foi você que me salvou quando eu estava na praia. E apertou entre os braços a sua noiva toda corada. É muita felicidade!, continuou ele, voltando-se para a sereiazinha. Meus desejos mais ardentes se realizaram! Você compartilhará de minha felicidade, pois ama-me mais do que qualquer pessoa.
A jovem do mar beijou a mão do príncipe, embora tivesse o coração ferido.
No dia do casamento daquele que ela amava, a sereiazinha devia morrer e transformar-se em espuma.
A alegria reinava por todos os lados; os arautos anunciavam o noivado em todas as ruas e ao som de suas cornetas. Na grande igreja, um óleo perfumado brilhava nas lâmpadas de prata e os padres agitavam os incensários; os dois noivos deram-se as mãos e receberam a bênção do bispo. Vestida de seda e ouro, a sereiazinha assistiu à cerimônia; mas ela só pensava na sua morte próxima e em tudo o que perdera neste mundo.
Na mesma noite, os recém-casados embarcaram ao som das salvas da artilharia. Todos os pavilhões estavam içados no meio do navio que estava pintado de ouro e púrpura e onde fora preparado um magnífico leito. As velas se inflaram e o navio afastou-se ligeiramente sobre o mar claro.
Ao aproximar-se a noite, acenderam lanternas de várias cores e os marujos começaram a dançar alegremente no convés. A sereiazinha lembrou-se da noite em que ela os vira dançar pela primeira vez. E começou a dançar também, leve como uma borboleta e foi admirada como um ser sobre-humano.
Mas é impossível descrever o que se passava em seu coração; no meio da dança, ela pensava naquele por quem deixara sua família e sua pátria, sacrificando sua bela voz e sofrendo inúmeros tormentos – Essa era a última noite em que ela respirava o mesmo ar que ele, em que poderia olhar para o mar profundo e para o céu cheio de estrelas. Uma noite eterna, uma noite sem sonhos a aguardava, já que ela não possuía uma alma imortal. justamente até a meia-noite a alegria reinou em torno dela; ela própria ria e dançava, com a morte no coração.
Finalmente, o príncipe e a princesa retiraram-se para a sua tenda armada no convés: ficou tudo silencioso e o piloto quedou-se sozinho em frente ao leme. A sereiazinha, apoiando seus braços brancos na amurada do navio, olhava para o oriente, do lado do nascer do sol; sabia que o primeiro raio de sol a mataria.
De repente, suas irmãs saíram do mar, tão pálidas quanto ela mesma; elas nadaram em volta do barco e chamaram por sua irmã que ficara muito triste: os longos cabelos de suas irmãs não flutuava mais ao vento, elas o haviam cortado.
– Nós os entregamos à feiticeira, – disseram elas, para que ela venha em seu auxílio e a salve da morte. Em troca ela nos deu um punhal bem afiado, que aqui está. Antes do nascer do sol, é preciso que você o enterre no coração do príncipe e, assim que o sangue ainda quente cair aos seus pés, eles se unirão e se transformarão numa cauda de peixe. Você voltará a ser uma sereia; poderá descer para a água junto de nós e somente daqui a trezentos anos é que se transformará em espuma. Venha, você ficará alegre novamente. Tornará a ver nossos jardins, nossas grutas, o palácio, a sua voz maviosa será ouvida outra vez; junto a nós você percorrerá os mares i-mensos. Mas não demore! Pois antes do nascer do sol é preciso que um de vocês morra. Mate-o e venha, nós lhe suplicamos! Está vendo aquela luz vermelha no horizonte? Dentro de alguns minutos o sol nascerá e tudo estará terminado para você! Venha! Venha!.
A seguir, com um longo suspiro, elas mergulharam novamente, a fim de irem encontrar-se com a velha avó que esperava ansiosa pela sua volta.
A sereiazinha levantou a cortina da tenda e viu a jovem esposa adormecida, com a cabeça apoiada no peito do príncipe. Aproximou-se dos dois e depositou um beijo na fronte daquele que tanto amara. A seguir, voltou seu olhar para a aurora que se aproximava, para o punhal que levava nas mãos e para o príncipe que pronunciava em sonhos o nome de sua esposa, levantou a mão que empunhava o punhal e ... lançou-o no meio das vagas. No lugar onde ele caíra, pareceu-lhe ver várias gotas de sangue rubro. A sereiazinha lançou mais um olhar para o príncipe e precipitou-se no mar, onde sentiu seu corpo dissolver-se em espuma.
.Nesse instante o sol saiu das vagas; seus raios benéficos caíram sobre a espuma fria e a sereiazinha não sentiu mais a morte; ela viu o sol brilhante, as nuvens de púrpura e em sua volta flutuarem milhares de criaturas celestes e transparentes. Suas vozes formavam uma melodia encantadora, mas tão sutil, que nenhum ouvido humano poderia ouvir, assim como nenhum olhar humano poderia ver as criaturas. A jovem do mar apercebeu-se de que possuía um corpo igual ao delas e que, pouco a pouco, ela se elevava sobre a espuma.
“Onde estou?”, perguntou ela com uma voz da qual música alguma pode dar uma idéia.
“Junto com as filhas do ar, responderam as outras. A sereia não possui uma alma imortal e só pode conseguir uma, através do amor de um homem; sua vida eterna depende de um poder estranho. Assim como as sereias, as filhas do ar não possuem uma alma imortal, mas podem ganhar uma, por meio de boas ações.
“Nós voamos para os países quentes, onde o ar pestilento mata os homens, para levar-lhes o frescor; espalhamos pelos ares o perfume das flores por toda a parte por onde passamos, levamos o socorro e damos saúde. Depois que praticamos o bem durante trezentos anos, adquirimos uma alma imortal a fim de participar da felicidade eterna dos homens.
“Pobre sereiazinha, você esforçou-se da mesma forma que nós; como nós você sofreu e, saindo vitoriosa de suas provações, elevou-se até o mundo dos espíritos do ar e agora depende de você ganhar ou não uma alma imortal, por meio de suas boas ações..
E a sereiazinha, levantando os braços para o céu, derramou lágrimas pela primeira vez. Os gritos de alegria foram ouvidos novamente sobre o navio; mas ela viu o príncipe e sua bela esposa olharem fixamente e melancolicamente para as espumas brilhantes, como se soubessem que ela se precipitara nas ondas.
Invisível ela abraçou a esposa do príncipe, lançou um sorriso aos recém-casados, depois subiu com as outras filhas do ar para uma nuvem cor-de-rosa, que se elevou no céu.


Hans Christian Andersen




A cigarra e a formiga



Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.

"Amiga, — diz a cigarra —
Prometo, à fé d'animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal."

A formiga nunca empresta.
Nunca dá, por isso junta:
"No verão em que lidavas?"
A pedinte ela pergunta.

Responde a outra: "Eu cantava
Noite e dia, a toda hora.
— Oh! Bravo!, torna a formiga:
Cantavas? Pois dança agora!"


Bocage (Trad.)

30/01/2008

Bela Infanta (variante)


Dona Clara, Dona Infante
Estava no seu jardim,
Penteando tranças de oiro
Com seu pente de marfim,
Sentada numa almofada
De veludo carmesim.
Botou os olhos ao mar
E avistou formosa armada:
Capitão que a governava
Que bem a traz preparada!
Saltou em terra ele só
Com a viseira calada,
Vem saudar a dona Infante
Que assim triste lhe falou:
– «Viste tu o meu marido
Que há tempo que me deixou?»
– «Teu marido não conheço,
Diz-me que sinais levou.»
– «Levou seu cavalo branco
Com sua sela dourada,
Na ponta de sua lança
Uma fita encarnada;
Um cordão do meu cabelo
Que lhe prendia a espada.
Se porém tu não viste,
Cavaleiro da cruzada,
Ó triste de mim viúva,
Ó triste de mim coitada!
De três filhas que eu tenho
E nenhuma ser casada.»
– «Sou soldado, ando na guerra,
Nunca teu marido vi:
Mas quanto deras, senhora,
A quem o trouxera aqui?»
– «Dera-te tanto dinheiro
Que não tem conto nem fim;
E as telhas do meu telhado
Que são de oiro e marfim.»
– «Não quero oiro ou dinheiro
Que me não pertence a mi:
Sou soldado, ando na guerra,
Nunca teu marido vi.
Quanto deras mais, senhora,
A quem o trouxera aqui?»
– «Dera-te as minhas jóias
Que não têm peso e medida;
Dera-te o meu tear de oiro,
Roca de prata polida.»
– «Não quero oiro nem prata:
Com ferro minha mão lida.
Sou soldado, ando na guerra,
Nunca teu marido vi:
Mas quanto deras senhora,
A quem no trouxera aqui?»
– «Das três filhas que eu tenho,
Eu tas dera a escolher,
São formosas como a lua,
Como o sol a amanhecer.»
– «Eu não quero tuas filhas,
Não me podem pertencer.
Sou soldado, ando na guerra;
Nunca teu marido vi:
Mas quanto deras, senhora,
A quem no trouxera aqui?»
– «Não tenho mais que te me dar
Nem tu mais que me pedir.»
– «Inda tens mais que dar,
Não estejas a mentir;
Tens teu leito de oiro fino
Onde eu quisera dormir.»
– «Cavaleiro que tal diz
Merece ser arrastado
Em roda do meu jardim
Aos pés de um cavalo atado.
Vinde cá, criados meus,
Castigai este soldado.»
– «Não chames os teus criados
Que criados são de mi.»
– «Se tu és o meu marido
Porque me falas assim?»
– «Por ver se me eras leal
É que disfarçado vim.
Lembras-te, ó dona infante,
Quando eu daqui saí,
O anel de sete pedras
Que contigo reparti?
Se as tuas não perdeste,
As minhas ei-las aqui.»
– «Vinde cá, ó minhas filhas,
Vosso pai é já chegado.
Abri-vos, portão de jaspe
Há tanto tempo fechado!
Folgai, folgai, meus vassalos,
Que é Dom Infante a meu lado.»

Romanceiro, Almeida Garrett

Os três conselhos


Um pobre rapaz tinha casado, e para arranjar a sua vida, logo ao fim do primeiro ano teve de ir servir uns patrões muito longe. Ele era assim bom homem, e pediu ao amo que lhe fosse guardando na mão o dinheiro das soldadas. Ao fim de uns quatro anos já tinha um par de moedas, que lhe chegava para comprar um eidico, e quis voltar para casa. O patrão disse-lhe:
– Qual queres, três bons conselhos que te hão-de servir para toda a vida, ou o teu dinheiro?
– Ele, o dinheiro é sangue, como diz o outro.
– Mas podem roubar-to pelo caminho e matarem-te.
– Pois então venham de lá os conselhos.
Disse-lhe o patrão:
– O primeiro conselho que te dou é que nunca te metas por atalho, podendo andar pela estrada real.
– Cá me fica para meu governo.
– O segundo, é que nunca pernoites em casa de homem velho casado com mulher nova. Agora o terceiro vem a ser: nunca te decidas pelas primeiras aparências.
O rapaz guardou na memória os três conselhos, que representavam todas as suas soldadas; e quando se ia embora, a dona da casa deu-lhe um bolo para o caminho, se tivesse fome; mas que era melhor comê-lo em casa com a mulher, quando lá chegasse. Partiu o homenzinho do Senhor, e encontrou-se na estrada com uns almocreves que levavam uns machos com fazendas; foram-se acompanhando e contando a sua vida, e chegando lá a um ponto da estrada, disse um almocreve que cortava ali por uns atalhos, porque poupava meia hora de caminho. O rapaz foi batendo pela estrada real, e quando ia chegando a um povoado, viu vir o almocreve todo esbaforido sem os machos; tinham-no roubado e espancado na quelha. Disse o moço:
– Já me valeu o primeiro conselho.
Seguiu o seu caminho, e chegou já de noite a uma venda, onde foi beber uma pinga, e onde tencionava pernoitar; mas quando viu o taverneiro já homem entrado, e a mulher ainda frescalhuda, pagou e foi andando sempre, Quando chegou à vila, ia lá um reboliço; era que a Justiça andava em busca de um assassino que tinha fugido com a mulher do taverneiro que fora morto naquela noite. Disse o rapaz lá consigo:
– Bem empregado dinheiro o que me levou o patrão por este conselho.
E picou o passo, para ainda naquele dia chegar a casa. E lá chegou; quando se ia aproximando da porta, viu dentro de casa um homem, sentado ao lume com a sua mulher! A sua primeira ideia foi ir matar logo ali a ambos. Lembrou-se do conselho, e curtiu consigo a sua dor, e entrou muito fresco pela porta dentro. A mulher veio abraçá-lo, e disse:
– Aqui está meu irmão, que chegou hoje mesmo do Brasil. Que dia! E tu também ao fim de quatro anos!
Abraçaram-se todos muito contentes, e quando foi a ceia para a mesa, o marido vai a partir o bolo, e aparece-lhe dentro todo o dinheiro das suas soldadas. E por isso diz o outro, ainda há quem faça bem.


Recolha de Teófilo Braga

Lenda do Cabo da Roca

Conta a lenda, que perto do Cabo da Roca, desapareceu de casa de sua mãe, um menino, cuja idade rondava os cinco anos, sem que sua triste mãe pudesse saber onde ele estava. Já o presumia caído de alto penhasco abaixo no mar, e afogado. Já o deplorava morto. Mas a verdade era outra. Umas bruxas o tinham tirado de sua casa e lançaram-no num despenhadeiro num monte sobre o mar.
Aos choros que o menino dava, acudiram uns pastores de gado que rapidamente deram a noticia à vila. De lá saíram muitos aldeões com a desconsolada mãe para socorrerem o pobre menino.
Para o tirarem do buraco que parecia de fundo inacessível foi uma tarefa complicada, mas rapidamente o conseguiram. Todos alegres por o verem são e salvo logo a mãe lhe perguntou quem o tinha posto ali; e quem lhe dera de comer durante tanto tempo. O menino explicou que tinham sido umas mulheres que o tinham trazido pelo ar e o tinham atirado para a tal cova, porém, disse que uma senhora, muito formosa, todos os dias lhe levava umas sopinhas de cravos para ele comer.
Depois da história explicada e tudo estar resolvido, toda a aldeia mais a mãe e o menino dirigiram-se à igreja para agradecer a Nossa Senhora tudo ter acabado em bem. Ao entrar na igreja e vendo a Senhora no altar o menino disse com estas formais palavras: "Ó mãe, eis ali a senhora que todos os dias me dava as sopinhas de cravo para eu comer". Este menino chamava-se José Gomes, mas foi sua alcunha que ficou conhecida na praça de Cascais, Chapinheiro.

Num retábulo pintado no interior da Igreja, que está ao pé do farol da Guia (Cascais), datado de 1858, encontra-se inscrito este milagre.


Quando os cães deixaram de falar

O casal Sam Fali e Sum Fléflé viviam em um povoado distante em meio à floresta. Um dia, Sum Fléflé foi caçar levando consigo o cãozinho Loló. Ao voltar para casa o pobre homem parava a todo o momento para descansar, pois a sua carga era por demais pesada. Em uma dessas paradas, o cãozinho Loló ofereceu-se para levar a carga em seu lugar, contanto que ele não revelasse à sua mulher que ele era capaz de desempenhar essa actividade e nem que era capaz de falar. Sum Fleflé aceitou, prometendo nada revelar à Sam Fali. Porém, a mulher desconfiou que algo tinha ocorrido e começou a perguntar ao marido quem tinha carregado a carga. Durante algum tempo o homem conseguiu guardar segredo, mas, ao ser ameaçado de abandono pela mulher, acabou por contar a verdade. Ao ver que tinha sido traído por seu amo, Loló gemeu muitas vezes e, desde esse dia, nunca mais cão algum falou.

Conto de São Tomé e Príncipe


28/01/2008

O Mercador e o Génio

Conta-se, ó afortunado rei, que viveu noutro tempo um mercador que possuía grandes riquezas e negócios em diversos países. Um dia, montou seu melhor cavalo e dirigiu-se a um desses países. No caminho, sentou-se sob uma árvore para descansar e alimentar-se. Ao comer tâmaras, lançava ao longe os caroços. De súbito, apareceu um enorme Afrit que se aproximou dele, brandindo uma espada e gritando: "Levanta-te que te mato como mataste meu filho!" Perguntou o mercador: "Quando e como matei teu filho?" Respondeu o Afrit: "Quando atiraste os caroços, um deles atingiu meu filho no peito, e ele morreu na hora”.Vendo que não tinha outro recurso, o mercador disse ao Afrit: "Fica sabendo, ó grande Afrit, que sou um crente que nunca falto à minha palavra. Possuo riquezas e filhos e uma esposa e inúmeros depósitos a mim confiados. Concede-me, pois, um prazo para que me despeça de minha família e distribua a cada um o que lhe é devido. Prometo voltar aqui no primeiro dia do ano, e tu disporás de mim como quiseres”.O gênio confiou no mercador e deixou-o partir. Em casa, ele pôs em ordem suas obrigações, distribuiu suas riquezas e revelou a parentes e amigos a triste sorte que o esperava. Todos choraram, mas nada podiam fazer. No primeiro dia do ano, voltou ao lugar do encontro como prometera. Sentou-se a chorar sobre sua sorte quando apareceu um xeque venerável conduzindo uma gazela presa. "Por que estás sozinho neste lugar assombrado pelos gênios?" Perguntou ao mercador. "E por que estás chorando?" O mercador contou-lhe a história. - Por Alá, retrucou o velho, teu respeito pela palavra dada é coisa rara, e tua história é tão prodigiosa que se fosse escrita com uma agulha no canto interno dos olhos, seria matéria de meditação para os que refletem.
Sentou-se, dizendo que ficaria lá até ver o que aconteceria. De repente, apareceu um segundo xeque, conduzindo cães lebréus pretos. Saudou o mercador e o primeiro xeque e perguntou-lhes: "Que fazeis neste lugar assombrado pelos gênios?" Contaram-Ihe a história, e ele também disse que esperaria lá para ver como acabaria essa curiosa aventura. Logo em seguida chegou um terceiro xeque conduzindo uma mula. Saudou a todos e quis saber o que estavam fazendo naquela terra perigosa. Repetiram toda a história, e ele também se sentou para aguardar os acontecimentos. Momentos depois se levantou um turbilhão de poeira, e o gênio apareceu com um gládio afiado na mão e os olhos soltando chispas. Agarrando o comerciante, disse-lhe: "Vem que te mato como mataste meu filho, que era o sopro de minha vida e o fogo de meu coração”.O primeiro xeque, mestre da gazela, criou coragem, beijou a mão do gênio e disse-lhe: "Ó grande gênio, o mais elevado entre os reis dos gênios, se eu te contar a história desta gazela e ficares maravilhado, conceder-me-ás a graça de um terço do sangue deste mercador?" O gênio concordou, e o xeque começou sua história:
“Ó grande Afrit, esta gazela era a filha de meu tio. Casei-me com ela quando éramos bem jovens e vivemos juntos trinta anos. Mas Alá não nos concedeu filho algum. Por isso tomei uma concubina que, com a graça de Alá, me deu um filho varão lindo como a lua nascente. Quando atingiu quinze anos, tive que viajar a negócios”.Ora, a filha de meu tio fora iniciada na feitiçaria desde a infância. Aproveitando minha ausência, transformou meu filho num bezerro e a mãe dele numa vaca, e juntou-os a nosso rebanho. Ao voltar, perguntei por eles. Minha esposa respondeu: “ A mulher morreu, e teu filho fugiu para não sei onde.” "Um ano inteiro fiquei chorando, o coração reduzido a pedaços. No Dia do Sacrifício, pedi a meu pastor que me trouxesse uma vaca gorda. Trouxe-me a vaca que havia sido minha concubina. Mal me aproximei dela para matá-la, pôs-se a gemer e chorar. Parei, e pedi ao pastor que a degolasse. Cumpriu a ordem, mas não encontramos na vaca nem carne nem gordura, mas apenas pele e ossos. "Tive remorsos, inúteis como a maioria dos remorsos, e pedi ao pastor trazer-me um bezerro bem gordo. Trouxe-me meu próprio filho enfeitiçado. Quando me viu, rebentou a corda e jogou-se a meus pés com gemidos e lágrimas. Tive pena dele e ordenei que fosse substituído. Mas a malvada filha de meu tio disse: ‘Devemos sacrificar é este bezerro mesmo. Está gordo como convém.' Obedecendo a não sei que instinto ofereci, antes, o bezerro de presente a meu pastor. "No dia seguinte, o pastor procurou-me e disse: Vou revelar-te um segredo que te alegrará e me valerá sem dúvida uma recompensa.' `O que é?' perguntei. Respondeu `Minha filha é feiticeira. Ontem, quando me deste o bezerro, levei-o para a casa de minha filha. Mal o viu, cobriu o rosto com o véu e censurou-me: `Pai, agora estás me expondo aos olhos de homens estranhos?' Perguntei: `Onde vês homens estranhos?' Respondeu: `Este bezerro é o filho de nosso amo, mas está encantado. E foi a mulher de nosso amo que o encantou, ele e a sua mãe!' "Fui imediatamente com o pastor à casa de sua filha, e perguntei-lhe: `É verdade o que contaste a teu pai acerca desse bezerro?'
- Sim, respondeu.
- Ó gentil e compassiva adolescente, se libertares meu filho, dar-te-ei todo meu gado e todas as propriedades que teu pai administra. "Sorriu e disse: `Ó amo generoso, aceitarei estas riquezas com duas condições: que me cases com teu filho e que me permitas enfeitiçar tua mulher. Sem isso, não tenho a certeza de poder prevalecer contra as suas perfídias.
"- Seja, respondi.
"Apanhou então uma bacia de cobre encheu-a de água e pronunciou conjurações mágicas. Em seguida, aspergiu o bezerro com a água, dizendo-lhe: ‘ Se Alá te criou bezerro, permanece bezerro; mas se estás enfeitiçado, volta a tua forma verídica, com a permissão de Alá.' Após tremer e agitar-se, o bezerro recuperou a forma humana. Era meu filho! Joguei-me em seus braços e cobri-o de beijos. Depois casei-o com a filha do pastor, e ela encantou a minha esposa e metamorfoseou-a nesta gazela."
Bem espantosa, a tua história, bradou o Afrit. Concedo-te o terço do sangue deste malvado. O segundo xeque adiantou-se então e disse: "Ó rei dos gênios, se te contar a história destes dois cachorros e a achares tão espantosa quanto a da gazela, conceder-me-ás um terço do sangue deste homem?"
- Vai falando, disse o Afrit. "Saberás, ó senhor dos reis dos gênios", disse o segundo xeque, que estes dois cachorros são irmãos meus. Quando nosso pai morreu, deixou-nos três mil dinares. Com a minha parte, abri uma loja e comecei a comprar e vender. "Meus irmãos preferiram a aventura e viajaram com as caravanas por um ano inteiro. Quando voltaram, tinham desperdiçado todo o seu capital. Estavam pobres e tinham aspecto lamentável”.Tive pena deles. Mandei-os ao hammam, comprei-lhes roupas finas e, pondo meu capital de lado, dividi com eles, em igualdade, todo o lucro daquele ano. E moramos juntos por muito tempo. Mas de novo queriam partir e insistiram para que fosse com eles. Embora os resultados de sua primeira viagem não fossem alentadores, consenti em acompanhá-los com uma condição: dividir o dinheiro que tínhamos - 6 mil dinares -- em duas partes iguais; deixar a metade escondida para nos amparar em caso de necessidade e partilhar a outra metade entre nós três. Concordaram e agradeceram-me. Com os 3 mil dinares, compramos as mercadorias mais indicadas, alugamos um navio, e embarcamos. Após viajarmos um mês, chegamos a uma cidade portuária onde vendemos nossas mercadorias com um lucro de dez por um. Quando voltamos ao porto para embarcar, encontramos lá uma mulher mal vestida que se aproximou de mim e beijou-me a mão, dizendo: ‘ Mestre, aceitas ajudar-me e me salvar? Por favor, casa-te comigo e me leva, e tudo farei para agradar-te.' Aceitei. Levei-a para o navio, vesti-a com esmero e partimos.
"Pouco a pouco fui tomado de um grande amor por ela. Não conseguia separar-me dela nem de dia nem de noite, e preferia sua companhia à de meus irmãos. Por sua vez, revelou-se uma mulher linda, inteligente, devotada e de nobre caráter”.Infelizmente, meus irmãos me invejavam cada dia mais e, uma noite, quando estava deitado com minha mulher, insinuaram-se em nosso aposento, apanharam-nos e jogaram-nos em alto mar. Minha mulher despertou nas águas e, de repente, transformou-se numa Afrita e carregou-me nos ombros até uma ilha.
Depois, desapareceu e só voltou na manhã seguinte, ainda mais bela, e disse-me: ‘ Não me reconheces? Sou tua esposa. Como vês, sou uma Afrita. Amei-te desde o primeiro instante em que te vi. Tiveste pena de mim e te casaste comigo. Agora salvei-te da morte com a permissão de Alá. Estamos quites. Quanto a teus irmãos, sinto-me cheia de ódio contra eles e vou afundar o navio em que estão e matá-los.' Muito me custou convencê-la a não os matar. Carregou-me então nos ombros, ergueu-se no espaço e depositou-me em minha casa. Retirei os 3 mil dinares de seu esconderijo, reabri minha loja e comprei novas mercadorias. "Quando voltei para casa, achei estes dois cachorros presos num canto. Ao me verem levantaram-se e começaram a chorar e agarrar-se às minhas vestes. ` São teus irmãos,' disse minha mulher. `Pedi à minha prima, que é mais versada em encantamentos do que eu, para dar-lhes esta forma, da qual só poderão libertar-se daqui a dez anos.' "É por isto, ó poderoso gênio, que me encontro neste lugar. Estou a caminho da morada daquela prima de minha mulher a quem vou pedir que restitua a meus irmãos sua forma anterior, pois os dez anos já decorreram.”
Exclamou o Afrit: "Tua história também é surpreendente. De coração, concedo-te mais um terço do sangue deste maldito. Mas vou tirar-lhe o terço que me é ainda devido”.O terceiro xeque, o da mula, interveio então dizendo: "Ó grande Afrit, se te contar uma história ainda mais maravilhosa que essas duas, conceder-me-ás o último terço do sangue deste homem?" O Afrit, que gostava muito de histórias raras, acedeu, dizendo: "Qual é a tua história?" O terceiro xeque falou: “Ó sultão e chefe de todos os gênios, esta mula que vês aí é minha esposa. Uma vez, tive que fazer uma longa viagem, e quando voltei, certa noite, achei-a deitada com um escravo negro na minha própria cama”.Estavam conversando, rindo, beijando-se e excitando-se mutuamente com pequenos jogos. Assim que me viu, lançou sobre mim uma água mágica que me transformou em cão e me expulsou de casa. Saí a errar pela cidade. Um açougueiro apanhou-me e levou-me para sua família. "Assim que a sua filha me viu, cobriu a face com o véu e censurou o pai por expô-la a um homem estranho. `Onde vês homens?' perguntou o pai. Ela respondeu: `Este cão é um homem. Uma mulher o enfeitiçou, e eu sou capaz de libertá-lo.' "- Liberta-o, então, minha filha, pelo amor de Alá. "Ela pegou uma vasilha de água, pronunciou certas palavras mágicas sobre a água, aspergiu-me com algumas gotas e disse: `Sai desta forma e retoma tua forma primeira.' "Logo, voltei a ser homem e, beijando a mão da rapariga, disse-lhe que desejava muito que minha mulher fosse enfeitiçada do modo como me enfeitiçara. " `É fácil,' disse a filha do açougueiro. E deu-me num vidro um pouco da água que usara para me salvar, dizendo: `Se encontrares tua mulher adormecida, borrifa-a com esta água, e ela tomará a aparência que tu indicares.' "Fui para casa, encontrei minha mulher dormindo, aspergi-a com a água mágica, dizendo-lhe: `Sai dessa forma e toma a forma de uma mula.' Num instante, transformou-se numa mula, como podes verificar, ó sultão e chefe dos reis dos gênios."
O Afrit virou-se para a mula e perguntou: "É verdade?" Ela abanou a cabeça como para responder: "Sim, é verdade”.Ao escutar essa história, na qual o mal era punido, o gênio estremeceu de emoção e prazer e concedeu ao xeque a graça do último terço do sangue do mercador. O mercador, muito feliz, agradeceu aos três xeques e ao Afrit, e os xeques o felicitaram por sua salvação. E cada um voltou para sua terra.




24/01/2008

Atire a vaca no precipício

Quando o Mestre e discípulo peregrinavam por distantes pastagens, certa vez foram acolhidos por uma família pobre, muito simpática mas que vivia em condições de miséria. Embora fossem boas pessoas, seus recursos materiais eram muito limitados. Sustentavam-se graças à sua uma vaca magricela que fornecia o leite para se alimentarem e o pouco que sobrava vendiam para ganhar uns trocos. Na hora da despedida, o discípulo com pena daquelas pessoas perguntou ao mestre se não podiam fazer nada por eles. O Mestre em sua sabedoria disse:
- Atire a vaca pelo precipício.
- Mas Mestre ...
- Atire a vaca no precipício ou suma com ela! - disse o Mestre.
O discípulo, sem compreender a intenção do Mestre cumpriu seus desígnios ainda que muito contrariado. E assim a família ficou sem a vaca.
Os anos se passaram e o discípulo, cheio de remorsos pelo que fizera, não voltou a ter paz. Para se redimir e pedir perdão à família resolveu voltar àquela região. Mas para seu espanto não conseguiu reconhecer a região. Onde antes havia uma região árida, encontrou terras cultivadas. Próximo de onde era o casebre encontrou um palacete. Angustiado supôs que a família fora obrigada a vender a casa e o terreno, pois já não tinham a vaca para sobreviver. Aproximou-se da bela casa e encontrou seus proprietários na piscina, divertindo-se. Para seu espanto verificou que estas eram as mesmas pessoas que antes encontrara, agora com aparência mais saudável e feliz. Sem entender nada, o discípulo perguntou que milagre tinha ocorrido naquele lugar. Com um sorriso no rosto o pai respondeu:
- Milagre, nada! Um dia nossa vaca desapareceu. Tivemos de procurar um novo meio de subsistência. Trabalhámos muito e procurámos formas alternativas. Ao longo dos tempos fomos prosperando.
Então o Discípulo compreendeu a sabedoria do Mestre.


Conto do Oriente




22/01/2008

A lenda do monge e do escorpião


Monge e discípulos iam por uma estrada e, quando passavam por uma ponte, viram um escorpião sendo arrastado pelas águas. O monge correu pela margem do rio, meteu-se na água e tomou o bichinho na mão. Quando o trazia para fora, o bichinho o picou e, devido à dor, o homem deixou-o cair novamente no rio. Foi então a margem tomou um ramo de árvore, adiantou-se outra vez a correr pela margem, entrou no rio, colheu o escorpião e o salvou. Voltou o monge e juntou-se aos discípulos na estrada. Eles haviam assistido à cena e o receberam perplexos e penalizados.
- Mestre, deve estar doendo muito! Por que foi salvar esse bicho ruim e venenoso? Que se afogasse! Seria um a menos! Veja como ele respondeu à sua ajuda! Picou a mão que o salvara! Não merecia sua compaixão!
O monge ouviu tranquilamente os comentários e respondeu:
- Ele agiu conforme sua natureza, e eu de acordo com a minha.





21/01/2008

Os ladrões e o asno


Brigavam dois ladrões por um roubado burro:
Com ele um quer ficar, quer outro expô-lo à venda
E enquanto a discussão entre ambos corre a murro.
Terceiro vem que empolga a causa da contenda.

Não raro uma província ao burro é semelhante.
E uns príncipes quaisquer, iguais aos salteadores:
O Turco, o Transilvano, o Húngaro — em que instante,
Em vez de dois que busco, eis três dos tais senhores!

Abunda esta fazenda — embora com freqüência
Nenhum lugar consiga a terra conquistada,
Se vem o quarto ladrão que rindo da pendência
Cavalga no jumento e aos três dá surriada.


Gonçalves Crespo (Trad.)

20/01/2008

A figueira sem figos




Certo homem tinha uma figueira na sua plantação de uvas. E, quando foi procurar figos, não encontro nada. Aí disse ao homem que tomava conta da plantação:
- Olhe, já faz três anos seguidos que venho buscar figos nesta figueira e não encontro nada. Corte esta figueira! Porque deixá-la continuar ocupando o terreno sem produzir nada?
Mas o empregado respondeu:
- Patrão, deixe a figueira ainda este ano. Eu vou cavar em volta dela e pôr bastante adubo. Se no ano que vem ela der figos, muito bem, Senão der, o senhor pode mandar cortar.


Parabolas de Jesus
Lucas 13-6 a 9

19/01/2008

Os pássaros e seus instintos

Era uma vez dois ninhos no mesmo jardim. Um ficava num cipreste e o outro numa oliveira.
Um dia o passarinho que morava no cipreste roubou um ovo do que morava na oliveira e juntou-o aos ovos que estava chocando.
Passado algum tempo os ovos de ambos os ninhos abriram e os filhotes nasceram. Cresceram e tornaram-se cobertos de penas, e finalmente chegou o grande dia de seu primeiro voo.
Um após o outro, os filhotes que moravam na oliveira atiraram-se ao espaço, deram uma volta e voltaram felizes para seu ninho.
Um após o outros os filhotes que moravam no cipreste atiraram-se ao ar e voaram pelo jardim. Porém um deles, em vez de voltar para o cipreste, voou para o ninho que ficava na oliveira.
Era o passarinho que nascera do ovo roubado, voltando instintivamente para sua verdadeira mãe.






18/01/2008

O Rei Chahriar e seu Irmão O Rei Chahzaman


Conta-se - mas só Alá sabe tudo - que havia nas dobras do tempo e dos séculos um rei da dinastia dos Sassan que reinava nas ilhas da Índia e da China. E tinha dois filhos: Chahriar e Chahzaman. Ambos eram governantes justos, e seus povos amavam-nos.
Certo dia, Chahriar sentiu irresistível saudade do irmão e enviou seu vizir para convidá-lo. Chahzaman respondeu: "Ouço e obedeço”.Fez os preparativos necessários, encarregou o vizir de governar na sua ausência e partiu. No meio do caminho, lembrou-se de que havia esquecido um documento que queria mostrar ao irmão e voltou para apanhá-lo. Ao chegar ao palácio, encontrou a mulher deitada no seu leito imperial com um escravo negro. Pensou: "Se tais coisas acontecem quando ainda não saí da cidade, qual não será a conduta desta devassa se demorar-me muito tempo no reino de meu irmão?" Sacou da espada, cortou as duas cabeças e retomou viagem. Mas uma grande tristeza apoderou-se dele. Emagreceu, empalideceu. Ao vê-lo assim, o irmão preocupou-se e indagou-lhe sobre as causas de sua depressão. Ele não quis contar. Para distraí-lo e diverti-lo, Chahriar organizou uma excursão de caça e um safári, em sua honra. Assim mesmo, no último momento, desculpou-se, e seu irmão saiu sozinho com os convidados.No palácio do rei, havia janelas que davam para o jardim. O rei Chahzaman olhou através de uma delas e viu vinte escravas saírem do palácio acompanhadas por vinte escravos e dirigirem-se para um açude no meio do jardim. E ficou espantado ao reconhecer no meio do grupo a própria esposa do irmão, a qual, num determinado momento, chamou a si um negro gigante e entregou-se a ele na presença de todos, dando assim sinal para que escravos e escravas se juntassem e imitassem a rainha. Observando tudo isso, Chahzaman pensou: "Por Alá, minha desgraça é menos pesada que a de meu irmão”.E, instantaneamente, a alegria voltou-lhe ao coração e as cores às faces pálidas. Quando Chahriar voltou, alegrou-o ver o irmão recuperado e quis saber a causa de mudança tão repentina. "Posso contar-te a causa de minha depressão, não de meu restabelecimento”, disse Chahzaman. E contou-lhe o que acontecera entre ele e sua mulher. Mas o irmão queria saber também o segredo de seu restabelecimento e insistiu. Chahzaman acabou por lhe contar o que observara da janela do palácio.
- Primeiro, gostaria de ver tudo isso com os próprios olhos, disse Chahriar.
-É fácil, replicou o irmão. Proclama que estás viajando para um país longínquo, sai publicamente da cidade e a ela volta em segredo, e poderás assistir a tudo da janela como fiz.
Imediatamente, o rei encarregou um pregoeiro de anunciar a sua ida numa viagem demorada. Os soldados acompanharam-no e instalaram um campo fora da cidade. O rei entrou em sua tenda e ordenou aos criados que não deixassem entrar pessoa alguma. Depois, disfarçou-se em mercador e, voltando secretamente ao palácio, pôs-se à janela indicada. Menos de uma hora depois, viu vinte escravas e vinte escravos rodearem a rainha, viu o negro gigante e tudo o que seu irmão lhe descrevera.
O rei quase perdeu a razão e disse ao irmão: "Vamos procurar outro destino pelos caminhos de Alá, pois só teremos direito a voltar a nossos tronos se localizarmos homens mais desgraçados que nós."
Saíram do palácio e viajaram dias e noites até que chegaram a um prado à beira-mar. Naquele prado havia um córrego de água fresca. Os dois irmãos sentaram-se debaixo de uma árvore para beber e descansar. Logo, viram o mar agitar-se e dele sair uma coluna de fumaça negra, e a fumaça transformar-se num génio de enorme estatura, carregando um cofre. Aproximou-se da árvore, sentou-se e abriu o cofre, e os dois irmãos viram nele uma mulher de grande beleza que lembrava as palavras do poeta:
“Apareceu na noite e transformou-a em dia”.
E os viajantes se orientaram pela sua luz.
Seus olhos eclipsam os sóis e as luas.
As criaturas dançam de alegria quando ela chega.
E a natureza chove lágrimas quando ela se vai.”
O génio tirou a mulher do cofre e disse-lhe: "Vou dormir um pouco”.E, apoiando a cabeça nos joelhos dela, fechou os olhos e dormiu.
Ao ver os dois reis, a mulher acenou-lhes para se aproximarem. Mas eles explicaram por sinais que tinham medo do génio. "Não tenhais medo”, replicou. "Ele nunca acorda antes da hora habitual. Dispondes de muito tempo”.E como eles continuaram a hesitar, tirou a cabeça do génio de cima dos joelhos, depositou-a sobre uma pedra e disse aos reis: "Se não vos aproximardes e me furardes, acordarei o génio que vos submeterá à mais horrível das mortes." Então eles fizeram o que ela queria. E ela mostrou-lhes um pequeno saco cheio de anéis:
- Sabeis o que são estes anéis? Perguntou. São os anéis de 60 homens que copularam comigo sob os comos deste cretino Afrit. Agora, dai-me vossos anéis para que os junte à minha colecção. Acrescentou: “Este Afrit apaixonou-se por mim, raptou-me na noite de meu casamento e me encarcerou neste cofre, sendo mortalmente ciumento. Mas ele não sabe que seja o que for que uma mulher deseja, nada a impedirá de consegui-lo”.
Disse o poeta:
“Não confies nas mulheres
E não dês fé às suas juras.
Pois seus humores dependem de seus ovários.
Exibem amor fingido
E agem com perfídia.
Que a história de José te ponha de pré-aviso.
Não vês que o demônio expulsou
Adão do paraíso
Por causa de uma delas?”
Os irmãos olharam um para o outro e disseram: "Se a este génio acontecem coisas assim apesar de sua força e vigilância, podemos sentir-nos consolados”.E regressaram a seus palácios. Chahriar mandou cortar a cabeça de sua esposa e dos quarenta escravos e escravas. E a fim de prevenir qualquer futura traição, decidiu casar-se cada noite com uma nova donzela e mandar matá-la na aurora. Em três anos, centenas de moças foram assim sacrificadas. A tristeza e o horror encheram o reino. As famílias fugiam para salvar as filhas. Até que, um dia, o vizir, encarregado de conseguir uma nova donzela procurou e nada encontrou. Voltou para casa abatido e receoso do que o rei faria com ele. Ora, este vizir tinha ele mesmo duas filhas que superavam todas as demais moças em beleza, charme, finura, educação e inteligência. A mais velha chamava-se Chehrezad, e a mais nova Duniazad. Chehrezad havia lido inúmeros livros e conhecia a história dos povos, reis, poetas dos tempos antigos e modernos. Era eloquente, e sua voz tinha um timbre melodioso muito agradável.
Vendo o pai assim infeliz, perguntou-lhe qual era a causa de sua infelicidade. Contou-lhe. Então disse Chehrezad: "Por Alá pai, deve casar-me com este rei. Não importa que morra ou sobreviva, saberei livrar as filhas dos muçulmanos desta calamidade”.O vizir atendeu à vontade da filha, e levou-a ao rei Chahriar. Entretanto, Chehrezad dera as seguintes instruções à irmã: "Quando estiver com o rei, mandarei chamar-te. Assim que o rei acabar seu ato comigo, dize: Conta-nos, querida irmã, uma daquelas histórias maravilhosas que fazem o tempo passar de maneira tão deliciosa.' Então, contarei minhas histórias, e quiçá resgatarei assim as filhas dos muçulmanos." Quando o rei se aprontava para deitar com Chehrezad, começou ela a chorar. - Que tens? Perguntou o rei. - Ó meu soberano, tenho uma jovem irmã de quem gosto muito e queria despedir-me dela antes de morrer. O rei mandou vir Duniazad. Duniazad chegou e jogou-se nos braços da irmã; depois, ficou encolhida ao pé da cama até que o rei acabasse de arrebatar a virgindade de Chehrezad. Depois, Duniazad disse à irmã: "Alá te acompanhe, ó querida irmã. Por que não nos contas uma de tuas maravilhosas histórias para que a noite passe mais agradavelmente?”
- Fá-lo-ei com prazer se meu soberano permitir.
- Sim, conta-nos uma de tuas histórias, disse o rei a Chehrezad, esperando suavizar assim sua habitual insônia.
E Chehrezad pôs-se a falar...





Lenda de Viriato e do General Galba



Depois de muitas lutas, já esgotados, os chefes lusitanos decidiram propor a paz aos ocupantes romanos. Assim se estes lhes dessem terras férteis nas planícies, abandonariam as armas e a resiatência
Um chefe romano chamado Galba fingiu aceitar a proposta e ofereceu-lhes um local esplêndido na condição de entregarem as armas. Mas quando os viu espalhados por uma zona sem esconderijos e já sem hipóteses de se defenderem, esqueceu a palavra dada, cercou-os, matou nove mil homens e, não contente com isso, aprisionou mais de vinte mil guerreiros feitos escravos er enviados para a Gália ( França )
Galba pensava que a notícia desta vitória seria muito bem recebida em Roma e talvez até estivesse à espera de alguma recompensa. Também pensava que a violência do seu ataque tinha destruído para sempre a resistência dos Lusitanos. Afinal enganou-se redondamente.
As autoridades romanas davam muito valor às vitórias militares mas exigiam lealdade na guerra e respeito pelos inimigos. Quando souberam que Galba mentira aos Lusitanos para os vencer à traição e que atacara homens desarmados, homens que tinham confiado na palavra de um chefe romano, ficaram indignados. Em vez de recompensas, Galba foi chamado a Roma e julgado em tribunal. Nunca mais voltou à Península Ibérica.
Quanto ao efeito da violência bruta sobre os Lusitanos, foi exactamente o contrário do que Galba esperava. Em vez de ganharem medo, ganharam raiva contra o inimigo. Um dos homens que conseguiram escapar à carnificina tomou a seu cargo a vingança e a revolta. Chamava-se Viriato. Dois anos mais tarde já tinha consigo um exército de milhares de homens vindos de vários castros; desencadeou ataques sucessivos contra os Romanos, alcançando tantas vitórias que passou à história como um grande herói, um chefe invencível.

Ninguém sabe ao certo quando nasceu Viriato nem a que família pertencia. Segundo a tradição, durante a juventude terá sido pastor nos Montes Hermlnios, que hoje se chamam Serra da Estrela (1).
Há quem diga que Viriato participou desde muito novo em assaltos-relâmpago às povoações dominadas por romanos. E que já então se distinguia pela agilidade, pela força e pela inteligência guerreira.
No entanto, foi um dos homens que acreditaram nas promessas de Galba e desceram à planície na intenção de se instalar e viver em paz numa terra fértil. Assistiu ao ataque traiçoeiro; não pôde lutar porque não tinha armas, mas conseguiu fugir.
Depois do massacre, todos os lusitanos sobreviventes regressaram aos seus castros nas montanhas. A pouco e pouco reorganizaram-se, fabricaram armas e prepararam o contra-ataque.

No ano 147 a.C. dez mil lusitanos em fúria avançaram para sul e dirigiram-se a uma zona dominada pelos Romanos.
Queriam saquear as povoações e vingar a morte dos companheiros, mas quando menos esperavam perceberam que estavam cercados à distância por um anel de soldados inimigos. Que fazer?
Os chefes, para evitarem nova carnificina, propuseram-se ir negociar a rendição. Viriato opôs-se com veemência. Erguendo a voz, lembrou:
- Os Romanos não respeitam promessas. Enganaram-me uma vez, não me tornam a enganar. Comigo não contem para negociações. Prefiro lutar ou morrer.
O discurso e a firmeza impressionaram toda a gente, sobretudo os outros chefes. E Viriato continuou:
- Se não podemos vencê-los pela força, vencê-los-emos pela astúcia. Ora oiçam o meu plano.
Propôs-lhes então o seguinte: os homens que combatiam a pé deviam formar grupos e a um sinal combinado disparar em todas as direcções e romper a barreira que os cercava sem dar tempo aos inimigos de se organizarem.
- Enquanto vocês fogem, eu e os outros cavaleiros caímos sobre eles ora de um lado ora de outro, de forma a derrotá-los e a proteger a vossa fuga.
O plano foi aceite; faltava combinar o sinal.
- Fiquem atentos. Quando eu montar a cavalo, já sabem... é ordem para arrancar.
Pouco depois ecoavam gritos de guerra pelos campos, zuniam setas e lanças, por toda a parte se ouvia o tinir das espadas. Os romanos não estavam à espera daquela táctica-relâmpago e, tal como Viriato previra, desnortearam-se.
Muitos grupos de peões romperam o cerco e desapareceram, enquanto os bravos
cavaleiros lusitanos, apesar de estarem em minoria e de possuírem armas mais fracas, lutavam sem cessar.
O campo de batalha ficou juncado de mortos, o próprio general romano perdeu a vida,
mas não se pode falar de vitória ou derrota. Neste confronto, Viriato, mais do que vencer os Romanos, salvou os Lusitanos. A partir de então foi reconhecido e amado como chefe máximo por todas as tribos.
As mulheres sonhavam com ele, os homens admiravam-no, acatavam as suas ordens e seguiam-no com tanto entusiasmo e convicção que durante anos lançaram o terror entre as hostes inimigas. Viriato parecia invencível. E, de facto, em guerra aberta ninguém o derrubou.

No ano de 139 a.C. Viriato foi assassinado à traição, quando dormia na tenda, por três homens da sua tribo que os Romanos tinham aliciado e subornado. Os Lusitanos choraram longamente a perda daquele chefe querido e ficaram muito enfraquecidos. Quanto aos assassinos, parece que não chegaram a obter nenhuma recompensa pelo crime. Segundo consta, foram recebidos com desprezo pelo chefe romano, que lhes terá dito «Roma não paga a traidores».

É engraçado que tudo o que sabemos a respeito deste homem que os Portugueses consideram como o primeiro dos seus heróis foi escrito por autores romanos. Impressionados pela personalidade forte, austera e recta do chefe lusitano, impressionados também pelo imenso valor que demonstrava na guerra, escreveram vários textos elogiosos sobre ele. Apesar de serem adversários, foram os Romanos que deram a conhecer ao mundo a figura de Viriato.




13/01/2008

A criação do mundo


Na origem, nada tinha forma no universo. Tudo se confundia, e não era possível distinguir a terra do céu nem do mar. Esse abismo nebuloso se chamava Caos. Quanto tempo durou? Até hoje não se sabe.
Uma força misteriosa, talvez um deus, resolveu pôr ordem nisso. Começou reunindo o material para moldar o disco terrestre,1 depois o pendurou no vazio. Em cima, cavou a abóbada celeste, que encheu de ar e de luz. Planícies verdejantes se estenderam então na superfície da terra, e montanhas rochosas se ergueram acima dos vales. A água dos mares veio rodear as terras. Obedecendo à ordem divina, as águas penetraram nas bacias para formar lagos, torrentes desceram das encostas, e rios serpearam entre os barrancos.
Assim, foram criadas as partes essenciais de nosso mundo. Elas só esperavam seus habitantes. Os astros e os deuses logo iriam ocupar o céu, depois, no fundo do mar, os peixes de escamas luzidias estabeleceriam domicílio, o ar seria reservado aos pássaros e a terra a todos os outros animais, ainda selvagens.
Era necessário um casal de divindades para gerar novos deuses. Foram Urano, o Céu, e Gaia, a Terra, que puseram no mundo uma porção de seres estranhos.


Contos e lendas da Mitologia Grega



12/01/2008

A água da vida

Era uma vez um rei muito poderoso que vivia feliz e tranquilo em seu reino. Um dia adoeceu gravemente e ninguém esperava mais que escapasse. Seus três filhos estavam consternados vendo o estado do pai piorar dia a dia. Choravam no jardim quando surgiu à sua frente um velho de aspecto venerável que indagou a causa de tamanha tristeza. Disseram-lhe estar aflitos por causa da enfermidade do pai, já que os médicos não tinham mais esperanças de o salvar. O velho lhes disse: “Conheço um remédio muito eficaz que poderá curálo; é a famosa Água da Vida. Mas é muito difícil obtê-la.” O filho mais velho disse: “Vou encontrá-la, custe o que custar.” Foi imediatamente aos aposentos do rei, expôs-lhe o caso e pediu permissão para ir em busca dessa água. “Não. Sei bem que essa água maravilhosa existe, mas há tantos perigos a vencer antes de chegar à fonte que prefiro morrer a ver um filho meu correndo esses riscos” disse o rei. O príncipe porém insistiu tanto que o pai acabou por consentir. Em seu íntimo o príncipe pensava: “Se conseguir a água me tornarei o filho predilecto e herdarei o trono.” Partiu pois montado em rápido corcel na direcção indicada pelo velho. Após alguns dias de viagem, ao atravessar uma floresta viu um anão mal vestido que o chamou e perguntou: “Aonde vais com tanta pressa?” “Que tens com isso, homúnculo ridículo? Não é da tua conta” respondeu altivamente sem deter o cavalo. O anão se enfureceu e lhe rogou uma praga. Pouco adiante o príncipe se viu entalado entre dois barrancos; quanto mais andava mais se estreitava o caminho, até que não pôde mais
avançar nem recuar, nem voltar o cavalo nem descer. Ficou ali aprisionado sofrendo fome e sede mas sem morrer.
O rei esperou em vão sua volta. O segundo filho, julgando que o irmão tivesse morrido, ficou contentíssimo pois assim seria o herdeiro do trono. Foi ter com o pai e lhe pediu para ir em busca da Água da Vida. O rei respondeu o mesmo que ao primeiro; por fim cedeu ante a insistência do rapaz. O segundo príncipe montou a cavalo e seguiu pelo mesmo caminho. Quando atravessava a
floresta surgiu-lhe o anão mal vestido e lhe dirigiu a mesma pergunta: “Para onde vais com tanta pressa?” “Pedaço de gente nojento! Sai da minha frente se não queres que te espezinhe com meu cavalo.” O anão lhe rogou a mesma praga, assim o príncipe acabou entalado nos barrancos como o irmão.
Passados muitos dias sem que os irmãos voltassem, o mais moço foi pedir licença ao pai para ir buscar a Água da Vida. O rei não queria consentir, mas foi obrigado a ceder ante suas insistências. O jovem príncipe montou em seu cavalo e partiu; quando encontrou o anão na floresta ele, que era delicado e amável, deteve o cavalo dizendo: “Vou em busca da Água da Vida, o único remédio que pode salvar meu pobre pai, que está à morte.” “Sabes onde se encontra?” perguntou o anão. “Não.” “Pois já que me respondeste com tanta amabilidade vou te indicar o caminho. Ao sair da floresta não te metas pelo desfiladeiro que está à frente, vira à esquerda e segue até uma encruzilhada; aí segue ainda à esquerda. Depois de dois dias encontrarás um castelo encantado: é no pátio dele que se encontra a fonte da Água da Vida. O castelo está fechado com um grande portão de ferro maciço, mas basta tocá-lo três vezes com esta varinha que te dou para que se abra de par em par. Assim que entrares verás dois leões enormes prestes a se lançarem sobre ti para te devorar; atira-lhes estes dois bolos para apaziguá-los. Aí corre ao parque do castelo e vai buscar a Água de Vida antes que soem as doze badaladas, senão o portão se fecha e tu ficarás lá preso.”
O príncipe agradeceu gentilmente, pegou a varinha e os dois bolos e se pôs a caminho, e conforme as indicações chegou ao castelo. Com a varinha mágica bateu três vezes e o imenso portão se abriu; ao entrar os dois leões se arremessaram contra ele de bocas escancaradas, mas atirou-lhes os dois bolos e não sofreu mal algum. Porém antes de se dirigir à fonte da Água da Vida não resistiu à tentação de ver o que havia no interior do castelo, cujas portas estavam abertas: galgou as escadas e entrou. Viu uma série de salões grandes e luxuosos. No primeiro, imersos em sono letárgico, viu uma multidão de fidalgos e criados. Sobre uma mesa estava uma espada e um saquinho de trigo; pressentiu que lhe poderiam ser úteis e levou-os consigo. Indo de um salão a outro, no último deu com uma princesa de rara beleza, que se levantou e disse que, tendo conseguido penetrar no castelo, destruíra o encanto que pesava sobre ela e todos os súbditos do seu reino; mas o efeito do encantamento só cessaria mais tarde. “Dentro de um ano, dia por dia, se voltares aqui serás meu esposo”. Depois lhe indicou onde estava a fonte da Água da Vida e se despediu, recomendando-lhe que se apressasse para poder sair do castelo antes do relógio da torre bater as doze badaladas do meio-dia, porque nesse exacto momento os portões se fechariam. O príncipe percorreu em sentido inverso todos os salões por onde passara, até que viu uma belíssima cama com roupas muito alvas e recendentes; cansado que estava da longa caminhada deitou-se para descansar um pouco e adormeceu. Felizmente mexeu-se e fez cair no chão a espada que colocara a seu lado, despertando com o barulho. Levantou-se depressa: faltava um minuto para o meio-dia e mal teve tempo de correr ao parque, encher um frasco com a água preciosa e fugir. Ao transpor os batentes da entrada soou o relógio dando meio-dia; o portão se fechou com estrondo e tão rápido que ainda lhe arrancou uma espora.
No auge da felicidade por ter conseguido a água que salvaria seu pai e ansioso por se ver no palácio pulou sobre a sela e partiu a galope. Na floresta encontrou o anão no mesmo lugar, o qual vendo a espada e o saquinho de trigo disse: “Fizeste bem em guardar este precioso tesouro. Com essa espada vencerás sozinho o mais numeroso exército, e com o trigo desse saquinho terás todo o pão que quiseres e nunca se lhe verá o fundo.” O príncipe estava porém apoquentado com a desgraça dos irmãos, e perguntou se o anão poderia fazer algo por eles. “Posso, ambos estão pouco distante daqui entalados em barrancos muito apertados; amaldiçoei-os por causa de seu orgulho.” O príncipe rogou encarecidamente que os perdoasse e libertasse, e o anão cedeu às suas súplicas. “Mas te advirto que te arrependerás. Não te fies neles, são de mau coração; liberto-os apenas para te ser agradável.” Assim dizendo fez os barrancos se afastarem libertando os entalados, pouco depois reunidos ao irmão que os esperava. Muito feliz por tornar a vê-los o príncipe lhes narrou suas aventuras e disse que daí a um ano voltaria para desposar a maravilhosa princesa e reinar com ela sobre um grande país. Puseram-se os três de regresso para casa. Atravessaram um reino assolado pela guerra, estando o rei desesperado de poder salvar-se e a seu povo. O príncipe confiou-lhe então o saco de trigo e a espada mágica, com os quais o rei derrotou os exércitos invasores e encheu os celeiros até o forro. O príncipe tornou a receber a espada e o saquinho de trigo e os três irmãos seguiram viagem, tomando um navio para encurtar o caminho.
Durante a travessia os dois irmãos mais velhos, devorados de ciúmes, começaram a conspirar contra o mais novo. “Nosso irmão conseguiu a Água da Vida e nós não; com isso nosso pai o promoverá a herdeiro do trono que deveria ser nosso e nada nos restará.” Então juraram perdê-lo. De noite quando ele dormia furtaram-lhe o frasco e substituíram a Água da Vida por água salgada. Tentaram também roubar-lhe a espada e o saquinho de trigo mas os objectos desapareceram de repente.
Chegando em casa o jovem correu para o pai e lhe apresentou o frasco para que logo sarasse. Mal engoliu alguns goles daquela água salgada o rei piorou sensivelmente. Estava se lastimando quando chegaram os mais velhos e acusaram o irmão de ter querido envenenar o pai. Eles porém traziam a verdadeira Água da Vida e lha ofereceram. Apenas bebeu alguns goles pôde se levantar do leito cheio de vida e saúde como nos tempos da juventude. O pobre príncipe, expulso da presença do pai, se entregou ao maior pesar. Os dois mais velhos vieram ter com ele rindo e mofando: “Pobre tolo! Tu tiveste todo o trabalho e conseguiste encontrar a Água da Vida mas nós tivemos o proveito; devias ser mais esperto e manter os olhos abertos, enquanto dormias a bordo trocamos o frasco por outro de água salgada. E poderíamos se quiséssemos terte atirado ao mar para nos livrarmos de ti, mas tivemos dó. Livra-te contudo de reclamar e contar a verdade ao nosso pai, que não te acreditaria; se disseres uma só palavra não nos escaparás, perderás a vida. Também não penses em ir desposar a princesa daqui a um ano, ela pertencerá a um de nós dois.”
O rei estava muito zangado com o filho mais moço, julgando que o quisera envenenar. Convocou seus ministros e conselheiros e lhes submeteu o caso. Foram todos de opinião que o príncipe merecia a morte e o rei decidiu que fosse morto secretamente por um tiro. Partindo o moço para a caça sem suspeitar de nada um dos criados do rei foi encarregado de o acompanhar e matar na
floresta. Chegando ao lugar destinado o criado, que era o primeiro caçador do rei, estava com um ar tão triste que o príncipe lhe indagou a razão: “Que tens, caro caçador?” “Proibiram-me de falar, mas devo dizer tudo.” “Dize então o que há, nada temas.” “Estou aqui por ordem do rei e devo matar-vos.” O príncipe se sobressaltou mas disse: “Meu amigo, deixa-me viver. Dar-te-ei meus belos trajes em recompensa e tu me darás os teus, que são mais pobres.” “Da melhor boa vontade” disse o caçador. “É preciso que o rei julgue que executaste suas ordens senão sua cólera recairá sobre ti. Vestirei estas roupas feias e tu levarás as minhas como prova de que me mataste. Em seguida abandonarei para sempre este reino.” Assim fizeram.
Pouco tempo depois o rei viu chegar uma embaixada faustosa do rei vizinho incumbida de entregar ao bom príncipe os mais ricos presentes em agradecimento por ter ele salvo o reino da fome e da invasão do inimigo. Diante disso o rei se pôs a reflectir: “Meu filho seria inocente?” e comunicou aos que o serviam: “Como me arrependo de o ter mandado matar! Ah, se ainda estivesse vivo ...” Encorajado por estas palavras o caçador revelou a verdade. Disse ao rei que o bom príncipe estava vivo mas em lugar ignorado. Imediatamente o rei mandou um arauto proclamar por todo o país que considerava o filho inocente e que desejava imensamente sua volta. Mas a notícia não chegou ao príncipe; encontrara seu amigo anão, que lhe dera ouro suficiente para poder viver como um filho de rei.
Nesse ínterim a princesa do castelo encantado que ele livrara do sortilégio mandara construir uma avenida toda calçada com chapas de ouro maciço e pedras preciosas que conduzia directamente ao castelo, explicando aos seus vassalos: “O filho do rei que será meu esposo não tardará a chegar; virá a galope bem pelo meio da avenida. Mas se outros pretendentes vierem, cavalgando à beira da estrada, expulsem-nos a chicotadas.” Com efeito, dia por dia, um ano depois do jovem príncipe ter penetrado no castelo, o irmão mais velho achou que podia se apresentar como sendo o salvador e receber a princesa por esposa. Vendo aquela avenida calçada no meio de ouro e pedrarias não quis que o cavalo estragasse com as patas tanta riqueza que já considerava sua e fez o animal passar pelo lado direito. Quando chegou diante do portão e disse ser o noivo da princesa todos riram e depois o correram de lá a chicote. Pouco tempo depois veio o segundo príncipe, e vendo todo aquele ouro e jóias pensou que seria um pecado arruiná-los; fez o cavalo galopar pelo lado esquerdo e se apresentou como sendo o noivo da princesa. Teve a mesma sorte do irmão mais velho: foi corrido a chicote. Findava o ano estabelecido e o terceiro príncipe resolveu deixar a floresta para ir ter com sua amada e a seu lado esquecer as mágoas. Pôs-se a caminho pensando só na felicidade de tornar a ver a linda princesa; ia tão embebido que nem sequer viu que a estrada estava toda coberta de pedras preciosas. Deixou o cavalo galopar pelo meio da avenida, e quando chegou diante do portão do castelo este lhe foi aberto de par em par. Soaram alegres fanfarras e uma multidão de fidalgos saiu para recebê-lo. Dentro em pouco apareceu a princesa, deslumbrante de beleza, que o acolheu cheia de felicidade e declarou a todos que ele era seu salvador e senhor daquele reino. As núpcias foram realizadas imediatamente em meio a esplêndidas festas.
Terminadas as festas, que duraram muitos dias, ela lhe contou que seu pai o havia proclamado inocente e desejava vê-lo de novo. Acompanhado da rainha sua esposa ele foi ter com o pai e contou-lhe tudo que se passara: como fora traído pelos irmãos e como estes o obrigaram a se calar. O rei, extremamente irritado contra eles, mandou que seus arqueiros os trouxessem à sua presença a fim de receberem o castigo merecido, mas vendo suas maldades descobertas eles tinham tomado um barco tentando fugir para terras longínquas para aí esconderem sua vergonha. Não o conseguiram. Sobreveio uma tremenda tempestade que tragou o navio e eles pereceram miseravelmente.


Irmãos Grimm